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24/01/2004 - 03h00

Historiador investiga conexões, trocas e "traduções" interculturais

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CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Peter Burke é um sujeito privilegiado para tratar de diversidade cultural. Este inglês de 66 anos, filho de uma judia de origem polonesa e de um católico irlandês, já viveu na Cingapura, é casado com uma brasileira e tem livros publicados em croata, albanês e cazaque, entre outras 30 línguas.

Nada do que é humano parece estranho a seus estudos. Publicou livros sobre as elites urbanas de Veneza, a história social da linguagem, a fabricação da imagem do rei Luis 14, escreveu sobre carnaval, sonhos e elástica lista afora.

Historiador da cultura, como se auto-define, o professor de Cambridge agora está publicando um pequeno livro que faz uma bem acabada ponte Rio-Niterói entre esses tantos assuntos.

"Hibridismo Cultural", que a editora gaúcha Unisinos lança aqui, discute justamente os entroncamentos culturais, as interações que as mais diversas culturas travam, seja na religião, na gastronomia, ou em manifestações musicais como o manjado reggae ou um tal de "rock afro-celta".

Dono de "infatigável deleite em procurar ligações", como cravou um artigo da revista "History Today", Burke examina no livro terminologias como "troca cultural", "tradução cultural" e "hibridismo cultural", traça uma breve história dessas interações, aponta alguns resultados delas e projeta quatro cenários do futuro globalizado. Tudo isso em 116 páginas.

Leia a seguir trechos de entrevista dada à Folha por e-mail pelo historiador.

Folha - Por que um tema como o dos encontros e trocas culturais, classicamente objeto da antropologia, está atraindo tanto a atenção de historiadores, como o sr.?
Peter Burke -
Houve um tempo, mais ou menos 30 anos atrás, em que a maioria dos estudiosos dos encontros culturais eram antropólogos. Hoje, não apenas historiadores, mas sociólogos, romancistas, diretores de cinema e políticos estão interessados no assunto. Em muitos países, esse tema ficou obrigatório graças às imigrações maciças. Quando você vê mesquitas sendo construídas em Londres ou Paris, você começa a pensar sobre encontros culturais. É claro que existe uma tradição muito mais antiga de imigração no Brasil e nos Estados Unidos.

Folha - O sr. mesmo aponta que o hibridismo cultural não é um fenômeno novo, assim como a globalização não é totalmente inédita. Por que o hibridismo é particularmente discutido agora? Atingimos o pico do hibridismo cultural?
Burke -
Como sua questão sugere, também são possíveis encontros culturais a distância, como quando livros são traduzidos ou quando europeus assistem novelas brasileiras ou mexicanas. E os dois tipos de cruzamentos culturais, o "face a face" e o "à distância", tem longa história, assim como a globalização. O que é novo é a escala desses encontros e a velocidade das mudanças do processo de hibridização, para usar a metáfora botânica, as vezes conveniente, outras "despistante".

Folha - O livro em português chama-se "hibridismo cultural", apesar do título em inglês aludir ainda às trocas culturais e às traduções culturais. O sr. me parece mais simpático ao conceito de tradução, do que de hibridismo, não?
Burke -
Se tivesse de escolher uma palavra ou conceito que descrevesse as conseqüências dos cruzamentos culturais ficaria mais com a metáfora da "tradução" de culturas do que a do hibridismo cultural, pois ela expressa bem a idéia de que as conseqüências culturais de encontros não são automáticas, que as pessoas têm de trabalhar para adaptar itens de uma cultura para outra.

Folha - Quais culturas o sr. pensa que são mais fechadas para transações culturais hoje?
Burke -
Não tenho certeza se conheço o bastante sobre diversas partes do mundo para dizer qual cultura é a mais fechada hoje em dia. Mas entre as que me ocorrem estão Burma e Coréia do Norte.

Folha - O sr. fala no livro sobre a abertura cultural de japoneses. O sr. também se refere às grandes metrópoles como centros por excelência das trocas culturais. Como o sr. vê nesse aspecto São Paulo, metrópole com uma das maiores comunidades japonesas do mundo?
Burke -
Certamente vejo São Paulo como um centro de trocas culturais, mas a minha visão é policêntrica. Não acho que exista um centro principal e seria muito difícil medir a rapidez e a eficácia da miscigenação em diferentes partes. O que é certo é que vivemos um momento particularmente favorável para intercâmbios culturais, e pode ser um longo momento, se é que isto não for uma contradição. Pode-se até dizer que vivemos uma época que é muito favorável às trocas culturais porque muitos intercâmbios estão sendo feitos e a cultura está mudando tão rapidamente que nós mal compreendemos mais nossas próprias culturas.

Folha - O sr. acha que as trocas culturais cada vez mais incessantes podem levar, ou levem hoje, a casos de "idéias fora do lugar", para usar o termo de Roberto Schwartz?
Burke -
Em um certo sentido, todos os empréstimos culturais significam o deslocamento de idéias. Podemos falar sobre idéias sendo mais ou menos adaptadas às culturas que as recebem, mas também podemos pensar sobre a possibilidade de adaptação das culturas às idéias estrangeiras. Acho que Schwartz estava certo em mostrar a discrepância entre a anglofilia das elites brasileiras do século 19 e a persistência da escravidão, mas o que é que vem depois? Teria sido melhor para o Brasil se os donos de escravos tivessem sido consistentes e rejeitado idéias de liberdade e democracia? Ou essas idéias, ainda "fora do lugar" em 1870 acharam lugar depois de 1888?

Folha - Qual o cenário mais provável, na opinião do sr., para o futuro das relações culturais globais?
Peter Burke -
Acredito que as quatro tendências sobre as quais falo no livro "Hibridismo Cultural" podem coexistir e que as mais importantes a curto prazo, digamos nos próximos 20 anos, podem não ser tão importantes daqui a um século. Existe um bocado de discussão hoje sobre homogeneização cultural.

Concordo que exista essa tendência, mas penso que ela também é muito identificada (confundida) com uma americanização e que a velocidade que dizem ter essa homogeneização é frequentemente exagerada. A "contra-tendência", a resistência a ela, tem também muito fôlego hoje ainda que eu suspeite que essa resistência será menos importante em 30 anos, quando mais pessoas (hoje crianças) tiverem desenvolvido identidades ao mesmo tempo globais, nacionais e locais.

Folha - Mas em qual das tendências o sr. aposta?
Burke -
Acredito que o que chamo de diglossia cultural (a prática da cultura global em alguns setores, especialmente em público, e da local em outros, especialmente no âmbito privado) é o cenário mais possível de antever. Mas estou sempre de olho em sinais de novas sínteses entre itens de diferentes culturas, como o "rock afro-celta". É óbvio que uma síntese global em todas as áreas, se por ventura acontecer, será uma forma de homogeneidade, mas duvido de quão estável tal tipo de síntese seria.

Folha - A americanofobia é exagerada, como o sr. diz ter sido a italianofobia no passado?
Burke -
Sim, acho que a americanofobia é frequentemente exagerada e que os norte-americanos têm sido feitos de bodes expiatórios de processos de mudança que eles não iniciaram sozinhos.

Folha - Até que ponto o sr. concorda com Edward Said, quando ele diz que todas as culturas estão envolvidas entre si e que nenhuma delas é única e pura? Qual a originalidade de uma afirmação como esta, hoje não tão surpreendente?
Burke -
Para um historiador da cultura, a observação de Said não é surpreendente, ainda que seja incisiva e muito apropriada para ser citada. Mas muita gente, especialmente nacionalistas, devo dizer, acreditaram e ainda acreditam no mito da pureza cultural.

Folha - O sr. fala que o Islã é menos receptivo a trocas culturais. Qual a explicação do sr. para isso? A religião muçulmana, com claras relações com o cristianismo e com o judaísmo, não é híbrida?
Burke -
Você tem razão. O islamismo, assim como o cristianismo, é uma religião híbrida no sentido de que tomou muito emprestado do judaísmo. E existiram lugares (da África à Indonésia) e tempos em que islamismos locais incorporaram práticas de outras religiões. Mas nos dois séculos passados, em especial, o Islã viveu um forte movimento purificador (não diferente do puritanismo cristão), rejeitando "empréstimos" culturais. Comparativamente, o hinduísmo continua menos puro e mais aberto.

Folha - O sr. diz que a história do mundo poderia ser escrita em termos de sua ocidentalização. O sr. crê ser possível uma inversão desse processo, uma orientalização?
Burke -
Qualquer história do mundo tem, para ser legível, de escolher um tema ou um pequeno bloco de temas, de modo que nenhuma história do mundo pode ser definitiva. Contar a história do mundo, ao menos os últimos 500 anos, como a história da ocidentalização é uma escolha óbvia --ou uma série de escolhas, já que existem diferentes ocidentes. Seria também interessante fazer, como você sugere, a abordagem inversa, e talvez um historiador chinês ou japonês ainda escreva a história da influência da Ásia no resto do mundo. Funcionaria melhor se fosse uma história sobre o período pré-1500 ou posterior a 1950 do que no intervalo entre essas datas. Outra história do mundo pode começar com o crescimento do Islã e seguir sua influência no planeta até os dias de hoje. O problema de uma história da orientalização é que Oriente, como Said apontou, é uma categoria ocidental, que inclui culturas que diferem entre elas mesmas mais do que diferem do Ocidente.

Folha - O sr. diz que por pensar que seus livros vão ser publicados em muitas línguas, quando os escreve não faz muitas referências não-compreensíveis a outros países. O presente trabalho tem muitas alusões ao Brasil, como uma referência a uma viagem de Gilberto Gil para Lagos. O livro foi escrito inicialmente pensando na edição brasileira? O sr. eliminaria referências como essas em outras edições?
Burke -
Espero que minhas idéias sobre hibridismo cultural sejam publicadas em várias línguas. Originalmente as apresentei em uma palestra em Berlim, e o texto foi traduzido para o alemão. Eu fiz, então, algumas referências às fusões culturais de alemães e poloneses na região da Silésia, para provocar a platéia. Para a versão brasileira, eu adicionei uma boa quantidade de material novo, incluindo referências a dois Gilbertos, o Freyre e o Gil. Pretendo produzir uma versão maior para o inglês e aí terei de decidir se vou manter as menções brasileiras. Gil é provavelmente bastante conhecido o suficiente na Inglaterra para garantir seu lugar no livro.

HIBRIDISMO CULTURAL
Autor:
Peter Burke
Tradução: Leila Souza Mendes
Editora: Unisinos (tel. 0/xx/51/590-8239)
Quanto: R$ 14 (116 págs.)
 

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