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25/01/2004 - 07h08

Inquisição flagrou primeiro gay de SP, diz pesquisador

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MARIO CESAR CARVALHO
da Folha de S.Paulo

"Magro, alto de corpo, gentil-homem de rosto, tira a mulato, cabelo crespo e pouco barba." Tinha 32 anos e "alguns princípios de gramática". Era assim, segundo descrição dos inquisidores feita em 1646, o primeiro gay de São Paulo a ter a sua documentação encontrada em Portugal.

A descoberta foi feita pelo antropólogo Luiz Mott, 57, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, na Torre do Tombo, em Lisboa. Lá, estão arquivadas cerca de 50 mil páginas manuscritas sobre as 4.419 denúncias contra homossexuais feitas pela Inquisição, dos quais 30 foram condenados à fogueira.

Chamava-se Luís Gomes Godinho o ex-soldado e ex-criado que embarcou para o Brasil em 1642 para escapar da Inquisição em Lisboa. Não deu certo o plano de viver em paz nos trópicos. Quatro anos depois, no dia 14 de junho de 1646, ele seria preso na então vila de São Paulo sob a acusação de ser um "sodomita devasso".

Ficou em prisão domiciliar em São Paulo (porque a cadeia não oferecia "segurança"), teve de pagar 11 índios para levar seus bens até o Rio e de lá foi enviado para Lisboa, numa viagem de 112 dias.

O número de índios contratados e seus bens sugerem que ele não era um fugitivo miserável, segundo Mott. "Pela quantidade de pano, acho que ele era mascate ou iria abrir uma venda", arrisca.

A cama com que foi conduzido de São Paulo para o Rio, não citada em sua lista de bens, é outro sinal de riqueza. No final do século 16, havia só duas camas em São Paulo, segundo o historiador Afonso D'Escragnolle Taunay --a maioria dormia em redes. A vila era tão reles à época que não tinha mais que 5.000 moradores.

A vida sexual de Godinho em São Paulo é um mistério. O único fato registrado pela Inquisição é que viajou ao Rio com Vicente de Gouvêa, "um camarada seu". Camarada, como registram o Aurélio e um dicionário mais antigo, como o de Antonio de Morais Silva (1789), quer dizer "muito amigo", "companheiro", "amásio".

Já as peripécias dele em Portugal são extremamente detalhadas na confissão feita ao Santo Ofício por uma razão religiosa, segundo o historiador Ronaldo Vainfas, professor da Universidade Federal Fluminense. Nos casos de homossexualismo masculino, interessava à Inquisição provar se houve o que se chamava "sodomia perfeita" -a combinação de penetração anal com ejaculação.

Para que fosse aplicada a pena de morte, de acordo com Mott, a Inquisição teria que provar que o sodomita participou de duas relações (seja como ativo ou passivo) com ejaculação anal.

Sob pressão dos inquisidores, Godinho confessou mais de duas dezenas de atos homoeróticos, como "agente e paciente". Contou que foi possuído de "ilharga" ("de ladinho") pelo seu patrão, que participou de um ato de "sodomia completa" com um sacristão e de outro incompleto com um preso. Relatou que fizera parte de uma "suruba" com seis sodomitas, entre os quais um padre e um militar, e que já participara de vários "molícies".

O termo, diz Mott, designa os atos sem ejaculação, como "punheta" e "coxeta" (relação restrita às coxas), citados aos montes nos processos da Inquisição.

O antropólogo acredita que o Santo Ofício acabou estimulando esse tipo de carinho entre os homossexuais e vê paralelos com o que ocorreu nas últimas duas décadas, depois da ameaça do vírus da Aids: "Na Inquisição, os gays mudaram o comportamento e evitavam a ejaculação para fugir da fogueira. Com a Aids, aconteceu algo muito parecido: ninguém quer morrer, é claro".

Após passar um ano nos cárceres do Rossio, Godinho recebeu sua sentença no auto-de-fé realizado em 15 de dezembro de 1647. Não foi enviado à fogueira, como outro sodomita que estava preso com ele, mas foi açoitado até sangrar e condenado a remar para sempre nas galés do rei.

Após três anos de pena, Godinho fez um pedido ao "senhor inquisidor": queria que o degredo nas galés fosse comutado para outro degredo qualquer "já que está tolhido de frialdades e não se levante nem pode andar".

O Santo Ofício aceitou o pedido, Godinho foi enviado para Angola e nunca mais se ouviu falar dele.

A história de Godinho é a jóia da coroa de um livro que Mott prepara para os 450 anos de São Paulo, batizado "A Paulicéia Desvairada Fora do Armário: a Homossexualidade em São Paulo. 1554-2004". Ele diz saber, obviamente, que antes de Godinho devem ter existido outros homossexuais em São Paulo, "mas não sabemos nada porque a Inquisição não havia visitado a vila".

Em Olinda, por exemplo, há documentação sobre um gay em 1547. Na Bahia e em Pernambuco, mais de 30 "fanchonos" (gays de comportamento efeminado) são denunciados em 1591 e 1592.

No século 20, porém, São Paulo abriga uma constelação gay sem igual, segundo Mott. Entre os famosos que estão no armário, pretende incluir no livro o escritor Mário de Andrade (a quem Oswald de Andrade chamava maldosamente de "miss São Paulo" depois que brigaram), o inventor Santos Dumont, o paisagista Burle Marx e até Mazzaroppi. Do cômico de estilo caipira, Mott diz ter um relato do ator David Cardoso, segundo o qual o diretor convidou-lhe para dançar e meteu a mão onde ele não imaginava.
 

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