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28/02/2004 - 06h11

Autor explica por que os homens viajam

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FERNANDO EICHENBERG
free-lance para a Folha, em Paris

Em 1955, ao se deparar com a célebre frase "odeio as viagens e os exploradores", abertura do clássico "Tristes Trópicos", de Claude Lévi-Strauss, o historiador francês Daniel Roche, 68, disse ter assimilado a confissão como uma provocação num momento em que tudo inspirava ao incentivo e não ao fim das viagens.

Segundo ele, as palavras do antropólogo atuaram como um catalisador secreto no seu espírito, um estímulo na busca da resposta a uma "questão essencial à cada um de nós e à nossa civilização incessantemente preocupada em fugir de si mesma". Por que partir e por que retornar?

Sua interrogação resultou, depois de anos de pesquisas, num volumoso ensaio recentemente lançado na França, "Humeurs Vagabondes. De la circulation des hommes et de l'utilité des voyages" ("Humores vagabundos. Sobre a circulação dos homens e a utilidade das viagens", ed. Fayard, 1.036 págs, 32 euros).

Especialista do Iluminismo, o historiador analisa a oposição entre sedentarismo e mobilidade, e todas as formas da circulação de indivíduos e populações entre os séculos 16 e 18, passando também pelo gênero dos relatos de viagens. Daniel Roche manifesta sua preocupação com um mundo que se tornou um grande comércio de cidades e paisagens.

Folha - Por que, a partir do Renascimento, há essa enorme necessidade de circular que coloca a Europa em movimento?
Daniel Roche -
No meu livro, falo mais de mobilidade e circulação do que de viagens. As viagens são escolhas, em relação à sua função e à finalidade do trajeto, e terminam por designar um modo de descoberta do mundo. Viaja-se por uma descoberta intelectual, científica, social. Há certas injunções que fazem as pessoas viajarem, mas que não são totalmente deterministas. A mais evidente delas é a econômica, que implica no deslocamento.

Em todos os países da Europa, o comércio local se faz por meio de sucessivas mobilidades. As necessidades profissionais podem desembocar em verdadeiras curiosidades e transformações intelectuais, e é isso que me interessa em cada tipo de mobilidade.

Folha - O sr. invoca também a mobilidade de religiosos e peregrinos.
Roche -
Os bispos, por exemplo, têm o dever de conhecer sua diocese, e a visita pastoral faz parte de sua vida religiosa, profissional e pessoal. Nessa ocasião, eles descobrem a diversidade de seus fiéis, e é toda uma geografia religiosa que se instala. Esses bispos são obrigados, de tempos em tempos, a visitar a capital, na qual são realizadas as assembléias gerais do clero, e capitais de outras regiões.

A mobilidade dos peregrinos é algo mais massivo, que se transforma aos poucos entre a Idade Média e o século 19. Há uma grande transformação, porque, a partir do século 17, e no século 18, as igrejas e os Estados passaram a desconfiar de todos esses movimentos de peregrinação, vistos como desordem e geradores de despesas. Houve uma política de controle tanto pelas autoridades religiosas como civis. O fluxo global de peregrinos não se reduziu muito, mas muitas dessas peregrinações se regionalizaram.

Folha - Qual a importância da circulação dos estudantes nesse período?
Roche -
A peregrinação acadêmica, como se dizia na época, e ainda hoje na moda, é uma das dimensões intelectuais e materiais desses grandes deslocamentos. Nesse caso, também foram necessárias pesquisas bastante precisas para provar que, mesmo o melhor momento da mobilidade universitária medieval não atingiu mais de 10% ou 20% da massa estudantil. Mas isso dava, ainda assim, um modelo para o funcionamento das universidades, que associava à essa mobilidade os professores e os alunos.

Os Estados modernos criaram universidades por meio do recrutamento nacional e local. O que fez com que uma parte dessa massa tenha se dividido na geografia dos centros universitários, criados em função do credo das diferentes igrejas e da estatização das grandes nações.

Folha - Como a questão da circulação, essencial para a cultura ocidental, enfrenta a oposição entre sedentariedade e mobilidade?
Roche -
Entre os séculos 16 e 18 surge uma dupla interrogação. A primeira é a de que a sociedade se concebe como um mundo que deve ser, sobretudo, imóvel. Sua finalidade é fora do tempo, é a redenção, qual seja a cultura religiosa. Depois da Reforma, as idéias são as mesmas, vive-se num mundo no qual o passado e a história são vistos como uma referência explicativa, na qual encontramos todos os exemplos de vida e políticos. A novidade se introduz, mas sempre com dificuldade.

Vive-se num mundo no qual a hierarquia orgânica, a expressão dessa concepção sagrada e fixante do mundo, impõe que se fique preso a um lugar, a essa condição. A mobilidade está ligada a fenômenos muito duros da vida social antiga, como as guerras, as epidemias e, ao mesmo tempo, é uma ameaça para a estrutura social estabelecida e o mundo dominante, e a cada vez vemos reaparecer as mesmas tentativas para identificar as profissões móveis, desconfiar dos pobres e dos criminosos, e tentar, pouco a pouco, controlá-los.

Folha - Qual o fundamento teórico para esse contexto?
Roche -
A teoria em relação a essa desconfiança é a posição de Pascal: a felicidade dos homens é muito melhor assegurada se ficarmos no quarto do que se nos lançarmos nas estradas do mundo, com os perigos que isso implica. Mas, apesar da desconfiança, a circulação aumenta. Há um segundo debate, de discutir se elas são realmente necessárias.

No final, é interessante, pois há toda uma corrente do Iluminismo, levada pelo patriotismo local, e mesmo pelo nacionalismo, que diz, com Rousseau, que o melhor é conhecer o vizinho de sua porta em vez de pretender ir ver como vivem os turcos. E vai se admitir um consentimento estético suplementar, pois a descoberta da viagem regional, romântica pitoresca, vai se dar nesse quadro reorganizado pelas transformações políticas pós-revolucionárias.

Folha - Como as viagens vão influir no relativismo dos costumes, na erosão dos valores morais e políticos no século 18?
Roche -
Em relação ao relativismo dos costumes, o mestre desse pensamento, que atinge a função mesmo da mobilidade na transformação em relação à religião, aos costumes e à política, é Montaigne. No século 18, vamos assistir a toda uma utilização filosófica pela literatura de textos de viajantes, como Monstesquieu, com suas "Cartas Persas". Descobre-se que essas civilizações diferentes questionam as certezas mais absolutas em todos os domínios do pensamento.

Folha - Surge nesse período um controle maior da circulação.
Roche -
Em período de crise, há uma grande desconfiança das autoridades nacionais e das polícias urbanas em relação ao acolho desses fluxos populares. Quando eles atingem um número incontrolável, surgem questões em relação ao controle, e há toda a implantação de uma polícia para tentar criar meios de melhor conhecer os movimentos e vigiar as populações. São criados os papéis de identidade e surge o passaporte. Hoje, o passaporte eletrônico é a finalização desse movimento. A carteira de identidade é um fenômeno do século 19, ela surgiu depois do passaporte.

HUMEURS VAGABONDES. DE LA CIRCULATION DES HOMMES ET DE L'UTILITÉ DES VOYAGES
De:
Daniel Roche
Editora: Fayard
Quanto: 32 euros, 1.036 páginas
Onde encontrar: www.amazon.com
 

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