Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
28/02/2004 - 08h42

Comentário: Filme de Mel Gibson codifica o que resta aos EUA

Publicidade

GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York

Eu odeio aqueles que tentam generalizar os EUA como sendo uma coisa ou outra. Geralmente tenho uma resposta na ponta da língua: "de qual América vocês estão falando? Dos ucranianos, dos sino-americanos, dos ítalo-americanos, como De Niro, Pacino, Coppola, Scorsese, Al Capone e por aí vai, ou dos judeus americanos? Ou será que vocês estão falando dos "WASPs" (protestantes brancos anglo-saxões)? Ou falam dos hispânicos, dos porto-riquenhos ou dos cubanos que constituem a metade de Miami? Qual América, meu santo Deus?

Então, cheguei à conclusão que a única maneira de se definir esse país é por fatias do momento. Esse país existe quase que virtualmente e existe obstinadamente e compulsivamente para um determinado assunto. Depois ele morre e pronto, foi-se, acabou. Assim fica mais fácil. Ora é O.J. Simpson, ora é Bin Laden, ora é o escândalo da Enron, acabou de ser a vez de Michael Jackson de carregar a cruz e Martha Stewart está quase chegando ao fim do seu purgatório quando... de repente, explode no horizonte uma bomba mais potente do que essas que explodem em Bagdá diariamente.

Trata-se do último filme de Mel Gibson, a "Paixão de Cristo" que em inglês levou um título estranho e que soa quase que como um erro "The Passion of THE Christ", como se dado por um desses tradutores de terceiro mundo.

Para dar uma idéia da dimensão da confusão, polêmica e controvérsia que esse filme --declaradamente anti-semítico (não resta a menor duvida)-- está causando, basta dizer que o Oscar, o grande momento da vida americana, está praticamente relevado a segundo lugar. Mel Gibson conseguiu roubar a cena.

Daqui de onde moro pro ensaio no La MaMa, passo por três complexos de cinema onde estão levando o filme, que estreou nesta semana nos EUA. Às 8h30, já havia filas gigantescas (e quero uma ênfase enorme na palavra gigantesca), assim como nos bons velhos concertos de rock ou num Fla-Flu. Muita gente pernoitou (pelo que eu ouvi no canal New York One) para conseguir ingresso pra sessão do meio-dia.

Sim, esse é o país dos paradoxos mesmo, especialmente a Califórnia que tem como governador um austríaco, "the Terminator", o nosso querido Arnie Schwarzennegger, representando valores republicanos, enquanto é casado com Maria Shriver, da família Kennedy, todos altamente democratas até o fundo da alma. Nessa mesma Califórnia em que Gibson é ídolo e homófobo (sim, ele não permitiu que nenhum gay integrasse sua equipe ou elenco... bem, o filme foi rodado na Itália, mas é uma release de LaLaLand, ou seja, Hollywood), no dia em que escrevo, Rosie O'Donnell, personalidade de TV e lésbica assumida, casou-se com sua parceira em San Francisco depois de quase mil gays e lésbicas fazerem o mesmo no percurso da semana passada.

Mas agora, ao filme. Não vou mentir e dizer que enfrentei a fila. Os meus ensaios estão puxados demais e não tenho paciência pra congelar na fila. Usei das minhas influências e fui numa sala de projeção na Broadway com a 49 e assisti a quase duas horas e meia de pancadaria. Os críticos estavam certos. É porrada e mais porrada, a ponto de se ver a pele se destacar do corpo. Sim, e Gibson mantém que foram os judeus que mataram Cristo e que os romanos nada tiveram a ver com isso. Pilatos aparece como uma pessoa ingênua e Satã é interpretado por uma mulher (mas numa inversão de papéis, pois ela pretende fazer o papel de um homem veado, ou seja, uma total loucura que se passa na cabeça de Gibson, que fez desse filme uma obsessão).

Não há o que descrever sobre o filme pois quando há diálogo ele é tão mal escrito e melancólico que dá vontade de ir comprar pipoca. E quando não há diálogo, as cenas de violência são de tal forma exageradas que, ou se enxerga aquilo como um cartoon, ou se fecha os olhos. Não entendi o porquê disso tudo. Os extras italianos são sofríveis. Se Gibson quis dar uma de Pasolini, usando camponeses, se deu mal. Ah, mas Pasolini era homossexual, então, claro, Gibson jamais se inspiraria em uma figura tão blasfema.

O evento Gibson, assim como quase tudo isso que está acontecendo nesse imenso pais (o caso contra Michael Jackson, que não é branco nem preto, adulto nem criança, homem nem mulher), a proibição hoje do programa de rádio de um dos últimos bastiões da liberdade de expressão e vulgaridade, Howard Stern, essa pegação no pé da Martha Stewart (quando todo mundo faz o que ela fez), e a vergonha que a administração Bush está passando a cada soldado que morre em Bagdá e com cada declaração de Daniel Kay e Carl Ritter de que não existem armas de destruição em massa, o que resta a esse país talvez esteja escondido ou codificado no filme de Mel Gibson e na eleição de Schwarzenegger, que expressou que um imigrante, depois de 20 anos morando aqui, deveria poder ser presidente. A mensagem? Tendo em vista que um gosta de levar porrada e o outro é filho do Terceiro Reich... Dá-lhe porrada, Arnie!

Gerald Thomas é diretor de teatro
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página