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28/02/2004 - 09h07

Em "A Arte de Viajar", Botton passeia pela vida cotidiana

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CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Ele não tem a varinha de condão do pequeno Potter nem as habilidades peregrinas do alquimista Coelho, mas conseguiu façanhas editoriais dignas de mestre Houdini. Apostando em gêneros como filosofia, ensaio e alta literatura, não necessariamente blockbusters, o suíço-britânico Alain de Botton virou, ainda com menos de 30 anos, uma estrela internacional do universo dos livros.

A história começou em 1993, quando o jovem franzino e careca publicou "Ensaios de Amor", mistura de romance com ensaísmo light que logo estourou no Reino Unido e resto do globo. Amor e suas histórias cotidianas seriam a tônica daí em diante.

Com esse papel celofane, embalou de Sêneca a Proust, de Montaigne a Nietszche, para viagem.

E viagem é o tema da última cruzada do escritor. Em "A Arte de Viajar", que a editora Rocco lançou recentemente no Brasil, Botton, 34, volta ao mesmo mix -- biografias e idéias de grandes nomes da história artística e intelectual + doses cavalares de vida cotidiana (com cada um de seus detalhes mais banais).

Nesse trabalho, lançado na Inglaterra em 2002, o ensaista escalou desde pintores como Van Gogh ou Hopper até o bíblico Jó e o cientista natural Humboldt para discutir questões como "o que é exótico", "como administrar a diferença entre nossas expectativas pré e durante uma viagem", "o que é o exótico ou o sublime".

Cabem nessa expedição desde longas reflexões sobre uma placa do aeroporto de Amsterdã até uma pensata relativa ao amor que Flaubert tinha por camelos --tudo ilustrado com imagens de grandes pintores ou com fotos toscas tiradas pelo próprio autor.

É sobre essa trajetória de turista acidental que Alain de Botton, que tem seus seis livros publicados com sucesso no Brasil, falou com a Folha.

Em entrevista por e-mail, de Londres, o escritor de 34 anos falou sobre sua admiração incondicional por aeroportos e aviões ("A decolagem de um 747 continua para mim uma das coisas mais bonitas que eu já vi"), comentou a adequabilidade dos quartos de hotéis para reflexões filosóficas e adiantou detalhes do livro "Status Anxiety", que ele está lançando nesta semana na Inglaterra. Leia trechos a seguir.

Folha - No segundo ensaio do livro você conta que costumava visitar o aeroporto de Heathrow quando estava triste. Com que freqüência você faz isso e por que?
Alain de Botton -
Para mim, aeroportos são um lugar particularmente instigantes. Eles nos oferecem um maravilhoso vislumbre do que, na falta de uma expressão melhor, eu chamaria de "o mundo moderno", em toda a sua glória tecnológica. A decolagem de um boeing 747 continua para mim uma das coisas mais bonitas que eu já vi até hoje.

Folha - Quem é o viajante mais sábio da história?
Botton -
Eu sempre admirei o ensaísta Michel de Montaigne, que foi para a Itália e a Suíça no século 16. Ele era muito consciente com relação ao modo como pessoas e hábitos mudam ao passo que se muda de região.

Folha - Quais as principais diferenças do viajar nos tempos de Montaigne e na era globalizada?
Botton -
Os viajantes do passado tinham uma grande vantagem sobre nós. Eles sentiam que viajar era especial e escreveram sobre essas experiências com seriedade e autenticidade. Eu realmente não acho que as principais atrações do ato de viajar tenham mudado muito do ponto de vista psicológico. Claro, hoje é mais fácil chegar a diferente lugares, mas o que acontece em nossas mentes quando viajamos não é diferente agora do que há cem anos.

Folha - Você escreve que muitas vezes é mais fácil para alguém conhecer a si mesmo em um quarto de hotel ou em outros "não-lugares" do que em sua própria casa. Por que o melhor contra-exemplo disso, o seu "amigo" Marcel Proust, não foi contemplado entre os autores que você usa como "guias"?
Botton -
Tendo escrito um livro inteiro sobre Proust achei que seria um pouco exagerado usá-lo outra vez. De qualquer forma, uma das melhores coisas possíveis da leitura é que você sempre tem consigo a influência dos escritores que você amou. Assim, por trás de "A Arte de Viajar" está claramente a sombra de Proust.

Folha - Você discute longamente a relação entre as expectativas que temos antes de viajar e aquilo que encontramos. Em geral quais tipos de lugares são melhores do que nossas expectativas?
Alain de Botton -
Geralmente os lugares bonitos, porque a beleza é muito difícil de ser feliz o tempo todo. A beleza oferece uma solução material para o que pode ser de verdade um problema psicológico. Quando olhamos as fotografias de lugares para os quais queremos ir (e imaginamos o quão felizes nós seríamos se simplesmente estivessemos lá), nós tendemos a esquecer de uma coisa crucial: que teremos de levar-nos junto com nós mesmos. Ou seja, não estaremos apenas na Índia, na África do Sul, na Austrália, em Praga ou no Peru, de um modo direto, vamos estar lá conosco, ainda aprisionados aos nossos corpos e mentes, com todos os problemas que isso acarreta.

Folha - E o que a filosofia pode ensinar sobre isso?
Botton -
Existe um contraste tragicômico entre os projetos grandiosos dos seres humanos, como as construções de lindos hotéis ou a abertura de baías, e os nós psicológicos básicos que minam esses projetos. Esses grandes avanços da civilização são facilmente dizimados por qualquer explosão de raiva dos seus construtores. A irredutibilidade desses "nós" apontam para a sabedoria austera de certos filósofos da antigüidade, que de dentro de um barril ou de uma choça de lama argumentaram que os principais ingredientes da alegria não poderiam ser materiais ou estéticos, mas sempre teimosamente psicológicos.

Folha - A sua página na internet mostra uma agenda lotada de conferências em diferentes países. Quanto do seu trabalho é feito durante as viagens?
Botton -
Eu dificilmente escrevo enquanto viajo, mas quartos de hotel podem ser lugares muito inspiradores para fazer reflexões. Deitado na cama, o quarto quieto, com raras interrupções do elevador fazendo sua digestão nas vísceras do hotel, podemos pôr fim a conflitos nossos, sobrevoar faixas grandiosas e ignoradas de nossa experiência. Podemos refletir sobre nossa vida desde uma altura que não poderíamos atingir em meio ao nossos cotidianos ajudados pelo mundo não familiar à nossa volta: os pequenos sabonetes embrulhados na beirada da pia, a galeria de garrafas-miniatura no mini-bar, o menu do serviço de quarto com suas promessas de jantares a noite toda, a vista de uma cidade desconhecida se mexendo silenciosamente 25 andares abaixo de nós.

Folha - Você escreve que o que consideramos exótico em outros países pode ser aquilo que procuramos, em vão, no nosso próprio país. Somos nós, cada um de nós, os verdadeiros exóticos?
Botton -
Cada um de nós pode ser exótico para alguém. Essa é a beleza dos relacionamentos, duas pessoas viverem juntas e se acharem muito, muito exóticas.

Folha - Qual foi o ponto de partida de tantas viagens. Por que você decidiu escrever este livro?
Botton -
Eu queria descrever a sensação que temos em certos tipos de lugares. Eu tinha escrito um bom número de livros sobre a psicologia das relações humanas. Agora o que queria era falar sobre a psicologia dos lugares. Queria refletir sobre a influência de diferentes tipos de lugares na nossa percepção.

Folha - Um dos capítulos do livro discute o sublime. Você topou com o sublime durante suas viagens?
Botton -
Eu encontrei o que posso chamar de sublime durante uma viagem ao Deserto do Sinai e também, mais recentemente, durante uma viagem de avião de Nova York para Londres, quando passei por cima da Groenlândia, e seus quilômetros e quilômetros de vazio gelado.

Folha - Qual a sua opinião sobre fenômenos recentes como os cafés filosóficos ou "O Mundo de Sofia", de Jostein Gaarder? A "filosofia" está ficando pop?
Botton -
Não li "O Mundo Sofia" e nem visitei cafés filosóficos, mas me parece positivo o interesse crescente pela vida intelectual e a busca de consolação em qualquer tipo de livro.

Folha - Alguns filósofos, como Jacques Rancière, criticaram seu livro "Consolações da Filosofia" como "ensaísmo light" e "auto-ajuda filosófica". Como você lida com essas críticas?
Botton -
Eu gosto de sentir que eu escrevo um material que é ao mesmo tempo profundo e também agradável e divertido. Algumas pessoas acham isso impossível, mas eu acho esse um ótimo objetivo a se buscar. Nada melhor do que entreter e iluminar ao mesmo tempo.

Folha - Qual a pior faceta das viagens?
Botton -
É a interrupção da rotina --por incrível que pareça coisas boas também saem da rotina. Todos precisam de ordem para se sentirem si mesmos. A quebra dessa calmaria é boa de vez em quando, mas não sempre.

Folha - Qual é o grande tesouro que se pode ter após uma viagem?
Botton -
A grande coisa é que a memória sempre corta as partes chatas. É como se fosse só um "greatest hits", que nos concentra apenas nas coisas valiosas que sentimos quando estivemos lá.

A ARTE DE VIAJAR
De:
Alain de Botton
Tradução: Waldéa Barcellos
Editora: Rocco
Quanto: R$ 34,50 (276 págs.)
 

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