Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
14/03/2004 - 08h03

"33" traz novos horizontes aos documentários

Publicidade

JEAN-CLAUDE BERNARDET
especial para a Folha de S.Paulo

O filme "33" é um documentário no qual o diretor se propõe a encontrar sua mãe biológica. Mas este é só um ponto de partida. Quando Kiko Goifman inicia o processo de busca simultâneo à filmagem, não sabe o resultado a que isto o levará: há uma certa coincidência entre o que seja o processo de busca, o processo de preparação e a própria realização do filme.

Deste modo, "33" se afasta de uma forma hegemônica de cinema documentário segundo a qual o filme sempre parte do que chamo de uma situação estável. Tal situação pode ser um museu, pode ser um grupo de sem-teto que mora na rua. Nestes casos, o documentarista trabalha sobre uma situação permanente, pelo menos durante as filmagens. Num documentário tradicional, a preparação é sempre anterior à produção das imagens. Esta preparação não é incorporada ao filme.

Defendo uma outra linha possível de cinema documentário dentro da qual "33" está incluído. Não são muitos esses filmes, aliás, pouquíssimos. O que vem a ser esse tipo de documentário? Essa outra linha é composta por "documentários de busca". O documentarista parte de um projeto, porém, o filme não está dado logo de início. Depende do desenvolvimento de um processo, que pode ser muito rico, que pode ser menos rico, levando a este ou àquele resultado. "Passaporte Húngaro", de Sandra Kogut, faz uma proposta semelhante. Essa idéia de busca tem a ver com a experimentação, inclusive científica. Na ciência, muitas vezes, você parte de uma hipótese para verificar ou não sua validade.

Então, um filme como "33" supõe --por parte do documentarista-- um risco grande, porque realmente ele não sabe que filme ele vai poder fazer. É só no final da filmagem que ele vai conhecer o resultado de seu material. É um documentário que trabalha com o princípio da incerteza.

O que é diferente do documentarista tradicional, que opera sobre situações estáveis e que vai dispor delas --documentários sobre um quadro, o ateliê de um pintor, pessoas na rua etc.-- durante todo o tempo da realização do seu filme.

O que no "documentário de busca" se transforma é a própria postura do documentarista, não só porque ele não sabe onde vai chegar, mas porque no caso específico do "33" é uma vivência pessoal que se está investigando. E isso faz com que o documentarista continue sendo documentarista, mas ele trata uma questão pessoal, que existe independentemente do fato dele ser documentarista. Kiko Goifman é um filho adotivo não por ser documentarista. Poderia ser qualquer coisa, ter outra profissão, mas continuaria filho adotivo. Por outro lado, quando o diretor realiza a filmagem e monta o filme, esse documentarista, essa pessoa, também se converte em um personagem.
O diretor conta uma história que é a história dessa busca. Kiko é, então, personagem de algo que podemos chamar de uma ficção documentária.

E este personagem também é a sua pessoa e é quem documenta todo o processo da investigação, alimentado pela ânsia de chegar a um resultado.

Isso é extremamente importante porque na crise da representação --seja cinematográfica, teatral ou literária-- existem certas dúvidas quanto ao personagem totalmente de ficção. Estamos à procura de um tipo de figura que mescla a pessoa, o personagem e também o observador. No caso de "33", Kiko Goifman é o primeiro observador e depois, obviamente, outros observadores se somam, os espectadores do filme. Então, essas três instâncias --pessoa/personagem/observador--, claramente divididas em categorias diversas, se fundem.

O filme tem um personagem cuja estrutura é ficcional, no sentido em que tem um objetivo como têm os personagens da ficção. Ele enfrenta obstáculos, que vai superando ou não. Portanto há uma mescla também entre a atitude documentária e a ficcional.

Estruturalmente são visíveis traços de ficção. Não como "docudramas" ou reconstituições de cenas pelas próprias pessoas que são objetos do documentário. Nestes casos o documentarista já sabe aonde vai chegar e o que as pessoas terão de encenar. Nos "documentários de busca", a cada entrevista, a cada nova situação, o diretor vai em uma direção.

Em "33" essa fusão existe também em outros níveis. Considero que o filme seja um documentário com uma atitude humorística. Um filme de humor pressupõe ironia e distanciamento. Em que medida essa ironia e esse distanciamento se transformam realmente em humor é porque a situação tratada é uma situação crucial para o diretor. Goifman é um sobrenome judaico. Não há nenhuma indicação no filme de que o diretor seja biologicamente judeu, no entanto Kiko foi educado dentro de uma família judia. Esse tipo de humor, em relação a algo sério, tão vital, tão essencial, que poderia colocar em risco as relações entre o documentarista e sua mãe adotiva e o fato de tratá-la de forma distanciada e humorística, é um traço de humor judeu. A capacidade de uma certa cultura judaica de ironizar sobre certas situações e fatos gravíssimos. Então não é uma piada que Kiko Goifman faz. Trata de uma história fundamental da vida dele, com um distanciamento construído de duas maneiras:

a) Uma atitude de jogo incorporada ao filme, que são os parâmetros criados na abertura do projeto. A lógica de encontrar a mãe biológica leva em conta a obediência a certas regras. A principal é que, fazendo o filme aos 33 anos, o diretor se obriga a 33 dias de busca de sua mãe e de filmagem, independente do resultado obtido. É criada uma coerção inicial e a atitude de inserir um problema vital em regras de jogo é fundamentalmente de humor. Essa relação entre o filme e o jogo também se manifesta pelo fato de vários games procurarem também fundir personagens com as pessoas que manipulam o jogo;

b) A relação do filme com o cinema noir. "33" é construído com uma certa tonalidade de fotografia, luzes e sons e com a participação dos detetives privados; tudo isso vem do cinema noir. Uma operação interessantíssima, porque o filme noir é um gênero de filme policial, extremamente codificado quanto aos seus personagens, à sua luz, aos seus temas etc. É muito curioso alguém tratar um problema tão pessoal passando pelo viés de um produto da indústria cultural que é a coisa menos subjetiva, uma mercadoria. Esse aspecto aponta para a lógica da subjetividade no momento atual. Temos uma certa dificuldade em diferenciar o que realmente seria genuinamente nosso e o que foi construído e que assimilamos.

A grande mudança em "33" é que esse trabalho passa a ser feito não sobre um personagem exterior ao cineasta, mas sobre o próprio documentarista, na medida em que a pessoa/a personagem se fundem. A relação com o filme noir em "33" é uma maneira de abordar de forma aguda não apenas um tema a ser tratado, mas uma questão de vida: "Onde estou nesta história? Quem sou eu? E o que eu sou?". Uma subjetividade construída por todo esse envolvimento da indústria cultural e que, mais uma vez, representa o sentido geral de busca do filme.

Essa mudança para o "documentário de busca" é extremamente importante. Chego a ter a impressão --possivelmente errada-- de que talvez "33" seja a única produção brasileira que realmente realize isso. Dessa forma, eu o vejo um pouco como um filme-manifesto que deve ser levado em conta pelos outros documentaristas. Para mim, "33" representa novos horizontes para o cinema documentário.

Jean-Claude Bernardet é crítico e escritor, autor de "Cineastas e Imagens do Povo" (Companhia das Letras)
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página