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18/03/2004
-
07h58
DIEGO ASSIS
da Folha de S.Paulo
O desenhista belga Hergé (1907-83), ao contrário de seu mais conhecido personagem, Tintin, que já visitou dezenas de países do globo, foi traduzido para mais de 45 línguas diferentes e costuma ser saudado como herói europeu a cada um de seus 75 aniversários, ainda hoje é uma incógnita.
Alvo de infinitas discussões sobre sua aproximação com a direita radical, nos anos 30, acusações de "colaborador" do nazismo, nos 40, e até uma discussão na Assembléia Nacional francesa, cinco anos atrás, para julgar se Tintin era "de esquerda" ou "de direita", Georges Rémi, vulgo Hergé, nunca abriu o bico para confirmar ou desmentir seu passado. Ou melhor: abriu uma única vez.
Procurado pelo então fanzineiro e hoje escritor francês Numa Sadoul, em 1971, para uma entrevista de rotina, o pai de Tintin surpreendeu o rapaz ao aceitar depor para uma biografia em livro, que Sadoul sonhava realizar.
"Tintin e Eu" levou três anos para ser publicado, filtrado por uma série de correções e reescrituras exigidas por Hergé. Agora, quase três décadas depois, a íntegra dessas entrevistas em que o autor fala sobre a sua infância "medíocre", seu perfeccionismo incorrigível e de sua relação "pecaminosa" com o catolicismo e as mulheres, ressurge, sem censura, no documentário "Tintin e Eu", do dinamarquês Anders Ostergaard, 38.
Apoiado também em falas de estudiosos de quadrinhos, da segunda mulher do desenhista, Fanny, e do próprio Sadoul, o documentário é dividido em três fases: o início da carreira de Hergé, no jornal católico belga "Le Vingtième Siècle", editado pelo reverendo Wallez, um adorador confesso de Mussolini; o fim conturbado do primeiro casamento do desenhista e seu "rompimento de contrato" com Deus; e, nos últimos momentos, o reencontro com o velho amigo Tchang-Tchong, que, quando jovem, ajudara Hergé em álbuns ambientados na China, entre eles a obra-prima "Tintin no Tibete".
Por conta da comemoração dos 75 anos de Tintin, em 10 de janeiro último, o filme estreou em festivais europeus de cinema neste ano e foi levado ao ar por TVs de Escandinávia, França, Bélgica e Suíça. Na próxima semana, faz escala no Brasil para participar da mostra É Tudo Verdade.
A Folha trocou e-mails com o diretor Anders Ostergaard. Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - Hergé era avesso a aparições públicas. Tudo o que você tinha em mãos eram fitas cassetes, velhas fotos e os 23 álbuns de Tintin. Como transformar isso em um documentário consistente?
Anders Ostergaard - Em primeiro lugar, eu tinha um grande trunfo visual: os desenhos de Hergé. O desafio era fazer dessas imagens fixas cinema, motivo pelo qual decidimos criar manipulações em 3D para que o público pudesse "viajar" por esses desenhos. Outro desafio era criar uma imagem viva de Hergé falando, quando tudo o que tínhamos era uma fita cassete. A solução, que parece com animação, foi manipular entrevistas que Hergé deu à TV em seu escritório em várias ocasiões.
Folha - A morte de Hergé facilitou a exploração desse material?
Ostergaard - Como você sabe, ele tinha arrependimentos sobre a entrevista que deu a Numa Sadoul, em 1971, e só decidiu publicá-la severamente censurada. Assim só o passar do tempo tornou possível que usássemos suas declarações em áudio sem censura.
Folha - Falando francamente e baseado em suas pesquisas para o documentário: Hergé era fascista?
Ostergaard - Não, de jeito nenhum. Sua cabeça --sempre muito aberta, um pouco anarquista e acima de tudo bem-humorada-- não combinava com idéias totalitárias. Nos anos 30, ele ainda era um jovem imaturo, faria qualquer coisa que as pessoas que estivessem a seu redor lhe pedissem. Creio que ele estava por demais focado em sua carreira e no sucesso de Tintin quando decidiu trabalhar para o jornal "Le Soir", sob controle alemão em 1940.
Folha - Que influência teve o reverendo Wallez na formação política de Hergé?
Ostergaard - Acho que ele via Wallez mais como um líder espiritual do que político. Wallez era um homem muito carismático, carinhoso, dinâmico, creio que uma figura paterna para Hergé --foi uma influência mais pessoal do que ideológica sobre ele.
Folha - Até que ponto ter conhecido Tchang-Tchong funcionou como um contraponto?
Ostergaard - Tchang se tornou um portal para um mundo diferente, uma outra civilização muito distante da Bélgica e da estreiteza de visão do catolicismo que Hergé conhecia. Dessa forma, acho que Tchang antecipa a modernidade --filosofia oriental, pintura abstrata e assim por diante-- que Hergé abraçaria profundamente no início dos anos 60.
Folha - Como o seu documentário foi recebido pelos fãs de Tintin?
Ostergaard - Alguns acharam um tanto taciturno, melancólico, que dei pouca ênfase ao lado cômico de Tintin. Outros sentiram falta do cãozinho Milou! Mas, sobretudo, a reação foi bastante positiva porque eles aprenderam algumas coisas novas sobre Hergé.
É TUDO VERDADE
Quando: de 25/3 a 4/ 4, no Rio; de 26/3 a 4/4, em São Paulo; de 6/4 a 11/4, em Brasília
Informações: www.etudoverdade.com.br
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da Folha de S.Paulo
O desenhista belga Hergé (1907-83), ao contrário de seu mais conhecido personagem, Tintin, que já visitou dezenas de países do globo, foi traduzido para mais de 45 línguas diferentes e costuma ser saudado como herói europeu a cada um de seus 75 aniversários, ainda hoje é uma incógnita.
Alvo de infinitas discussões sobre sua aproximação com a direita radical, nos anos 30, acusações de "colaborador" do nazismo, nos 40, e até uma discussão na Assembléia Nacional francesa, cinco anos atrás, para julgar se Tintin era "de esquerda" ou "de direita", Georges Rémi, vulgo Hergé, nunca abriu o bico para confirmar ou desmentir seu passado. Ou melhor: abriu uma única vez.
Procurado pelo então fanzineiro e hoje escritor francês Numa Sadoul, em 1971, para uma entrevista de rotina, o pai de Tintin surpreendeu o rapaz ao aceitar depor para uma biografia em livro, que Sadoul sonhava realizar.
"Tintin e Eu" levou três anos para ser publicado, filtrado por uma série de correções e reescrituras exigidas por Hergé. Agora, quase três décadas depois, a íntegra dessas entrevistas em que o autor fala sobre a sua infância "medíocre", seu perfeccionismo incorrigível e de sua relação "pecaminosa" com o catolicismo e as mulheres, ressurge, sem censura, no documentário "Tintin e Eu", do dinamarquês Anders Ostergaard, 38.
Apoiado também em falas de estudiosos de quadrinhos, da segunda mulher do desenhista, Fanny, e do próprio Sadoul, o documentário é dividido em três fases: o início da carreira de Hergé, no jornal católico belga "Le Vingtième Siècle", editado pelo reverendo Wallez, um adorador confesso de Mussolini; o fim conturbado do primeiro casamento do desenhista e seu "rompimento de contrato" com Deus; e, nos últimos momentos, o reencontro com o velho amigo Tchang-Tchong, que, quando jovem, ajudara Hergé em álbuns ambientados na China, entre eles a obra-prima "Tintin no Tibete".
Por conta da comemoração dos 75 anos de Tintin, em 10 de janeiro último, o filme estreou em festivais europeus de cinema neste ano e foi levado ao ar por TVs de Escandinávia, França, Bélgica e Suíça. Na próxima semana, faz escala no Brasil para participar da mostra É Tudo Verdade.
A Folha trocou e-mails com o diretor Anders Ostergaard. Leia a seguir trechos da entrevista.
Folha - Hergé era avesso a aparições públicas. Tudo o que você tinha em mãos eram fitas cassetes, velhas fotos e os 23 álbuns de Tintin. Como transformar isso em um documentário consistente?
Anders Ostergaard - Em primeiro lugar, eu tinha um grande trunfo visual: os desenhos de Hergé. O desafio era fazer dessas imagens fixas cinema, motivo pelo qual decidimos criar manipulações em 3D para que o público pudesse "viajar" por esses desenhos. Outro desafio era criar uma imagem viva de Hergé falando, quando tudo o que tínhamos era uma fita cassete. A solução, que parece com animação, foi manipular entrevistas que Hergé deu à TV em seu escritório em várias ocasiões.
Folha - A morte de Hergé facilitou a exploração desse material?
Ostergaard - Como você sabe, ele tinha arrependimentos sobre a entrevista que deu a Numa Sadoul, em 1971, e só decidiu publicá-la severamente censurada. Assim só o passar do tempo tornou possível que usássemos suas declarações em áudio sem censura.
Folha - Falando francamente e baseado em suas pesquisas para o documentário: Hergé era fascista?
Ostergaard - Não, de jeito nenhum. Sua cabeça --sempre muito aberta, um pouco anarquista e acima de tudo bem-humorada-- não combinava com idéias totalitárias. Nos anos 30, ele ainda era um jovem imaturo, faria qualquer coisa que as pessoas que estivessem a seu redor lhe pedissem. Creio que ele estava por demais focado em sua carreira e no sucesso de Tintin quando decidiu trabalhar para o jornal "Le Soir", sob controle alemão em 1940.
Folha - Que influência teve o reverendo Wallez na formação política de Hergé?
Ostergaard - Acho que ele via Wallez mais como um líder espiritual do que político. Wallez era um homem muito carismático, carinhoso, dinâmico, creio que uma figura paterna para Hergé --foi uma influência mais pessoal do que ideológica sobre ele.
Folha - Até que ponto ter conhecido Tchang-Tchong funcionou como um contraponto?
Ostergaard - Tchang se tornou um portal para um mundo diferente, uma outra civilização muito distante da Bélgica e da estreiteza de visão do catolicismo que Hergé conhecia. Dessa forma, acho que Tchang antecipa a modernidade --filosofia oriental, pintura abstrata e assim por diante-- que Hergé abraçaria profundamente no início dos anos 60.
Folha - Como o seu documentário foi recebido pelos fãs de Tintin?
Ostergaard - Alguns acharam um tanto taciturno, melancólico, que dei pouca ênfase ao lado cômico de Tintin. Outros sentiram falta do cãozinho Milou! Mas, sobretudo, a reação foi bastante positiva porque eles aprenderam algumas coisas novas sobre Hergé.
É TUDO VERDADE
Quando: de 25/3 a 4/ 4, no Rio; de 26/3 a 4/4, em São Paulo; de 6/4 a 11/4, em Brasília
Informações: www.etudoverdade.com.br
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