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20/03/2004 - 08h25

Boa Cia. interpreta a fome segundo Kafka

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VALMIR SANTOS
enviado especial da Folha a Campinas

Como tratar da arte de passar fome no país do Fome Zero? A Boa Companhia de Teatro, com sede em Campinas (São Paulo), foi buscar metáforas cênicas na fonte literária do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), mais precisamente no conto "Um Artista da Fome", que narra em dez páginas a ascensão e a queda de um jejuador.

Em cerca de 40 anos (ou dias), a trajetória do jejuador vai da voracidade popular, visitado dia e noite em sua jaula, curiosamente vigiada por açougueiros; passa pelo desprezo do povaréu às exibições; uma frustrante turnê pela Europa; e chega à decadência do emprego em um circo, exposto ao lado dos estábulos.

O ascetismo desse artista raro, que ao final revelará jamais ter ingerido algo não pela habilidade de jejuar, que lhe é fácil, mas pela falta de alimento que realmente o agradasse no mundo, inspira a Boa Companhia de Teatro na terceira parte de uma trilogia de contos de Kafka transpostos para os palcos.

"Mr. K e os Artistas da Fome" foi precedido de "Primus" (1999), baseado em "Comunicado a uma Academia" e apresentado no Festival de Curitiba em 2002, primeiro conto escrito por Kafka, e "Josefina, a Cantora ou o Povo dos Ratos", do texto de mesmo nome concluído meses antes da morte do autor.

O novo espetáculo é uma co-produção do festival alemão Arena e.V., dedicado a projetos de pesquisa de linguagem. A Boa Cia. apresentou-se lá em 2002, com "Primus", e foi convidada a estrear lá sua próxima criação, em intercâmbio com atores locais. Isso foi no final de 2003.

"Mr. K e os Artistas da Fome" faz sua estréia nacional hoje, na Mostra Oficial do Festival de Teatro de Curitiba.

Praça de alimentação

Está programado para um teatro localizado em um shopping. O prólogo do espetáculo se dá ao ar livre e, curiosamente, acontecerá na praça de alimentação.

Para a diretora Verônica Fabrini, a adaptação quer tratar da metáfora do alimento. "Ele em si, externo, depois mastigado e excretado. A aparência, a essência e a sobra", diz Fabrini. Procura traduzir especialmente os três momentos com cenas fora, dentro e atrás do teatro.

O ciclo tem a ver com a percepção do tempo. O conto evolui em quatro décadas. Fica implícita, pois, a própria passagem da decomposição do corpo.

"A gente costuma ver a fome refletida no corpo da pessoa. Fartura, a gente vê em embalagens. Quer dizer, em corpos também. Não é à toa que a obesidade é uma das doenças mais graves nos Estados Unidos. Às vezes está tão na cara", diz a encenadora.

Em paralelo, "Mr. K" desenvolve uma antropofagia política do texto. Kakfa dá de bom grado que o jejuador é patrocinado por uma indústria alimentícia. É instantânea a associação com o que é consumido (e descartado) pela indústria cultural nas sociedades contemporâneas.

Irredutível em seu número pesaroso, o homem esquálido da jaula dá espasmos de fúria, sacode a grade como um animal.

O conto "Um Artista da Fome" foi traduzido e adaptado do alemão por Christine Röhrig.

Escambo

Para Fabrini, a trilogia kafkiana da Boa Cia. traz à luz "uma profunda compreensão da arte no século 20, do ser artista deslocado na sociedade".

Serve também à autocrítica da companhia com sede em Barão Geraldo, o bairro onde está localizada a Unicamp. Formou-se ali, nos últimos anos, um nicho de grupos de pesquisa em trono do Lume ("Café com Queijo"), o que não impossibilita a diversidade de estilos.

"Ali, vivemos na forma do escambo, um grupo ajudando o outro, numa relação de troca que não passa pelo dinheiro", diz Fabrini, que integra a companhia ao lado dos atores Alex Caetano, Daves Otani, Eduardo Osório, Isis Zahara e Moacir Ferraz.

"Mr. K" inaugura parceria da Boa Companhia com o grupo campineiro Matula Teatro, que desde 2000 volta a investigação cênica para comunidades marginalizadas.

Com elenco predominantemente feminino, o Matula substitui atores internacionais da montagem original (quatro alemães, um argentino e uma chilena).

O Matula aproveita a viagem a Curitiba para se apresentar no Fringe com "Versão Vida Cruel", texto do grupo e também direção de Verônica Fabrini. É um espetáculo de rua em que o público é constantemente convidado pelos atores a fazer parte de cenas sobre solidão, amor e fé.

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