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27/03/2004
-
06h45
SERGIO SALVIA COELHO
Enviado especial da Folha de S.Paulo a Curitiba
"As palavras morrem diante das imagens", diz Kassandra, a profetiza em quem ninguém quer acreditar. Em época de guerra, como se fazer ouvir? Com texto ou imagem? Tentando combinar ambos, à lucidez apolínea de Brecht vem se unir o ritual dionisíaco de Artaud em muitas montagens do festival.
Em "Opus 69", a indignação do autor e diretor curitibano Guilherme Durães contra a tortura de mulheres pela ditadura brasileira jorra em um texto alucinado e transtornante, como uma hemorragia. Ousada síntese de "Hamlet" e "Valsa nº 6", ritualiza a tomada de consciência de uma menina ao descobrir simbolicamente uma caveira enterrada em seu próprio quintal.
Por seu lado, Fransérgio Araújo, ator do Teatro Oficina em sua primeira direção, resgata "Querô, uma Reportagem Maldita", de Plínio Marcos, de um registro naturalista do qual a peça já não necessita mais. Faz a história do menino de rua baleado em um bordel girar em torno de um círculo de baldes vermelhos, como um candomblé trash, elevando sua mãe prostituta à condição de uma deusa mãe.
Isso não quer dizer que a ritualização baste para atingir a platéia. Muito pelo contrário: nas duas montagens, o elenco jovem tem uma tendência a se inflamar demais com o discurso, caindo na armadilha narcisista de se entregar à euforia, não ao entusiasmo. Dioniso pede interiorização, e Artaud precisa de Stanislavski como Brecht precisa de Artaud.
Síntese
Em "Kassandra in Process", a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz faz valer seus quase 30 anos de estrada para tentar essa síntese.
Mesclando as histórias da guerra de Tróia, vista do ponto de vista dos troianos --e sobretudo de sua princesa Cassandra, que desautoriza com altivez a arrogância masculina--, a textos de Albert Camus, Samuel Beckett, rituais indígenas e indianos, essa "celebração" promove uma análise implacável da estupidez sempre repetida da guerra com mantras e produção luxuosa.
O público, conduzido por Deusas e Heróis através de salas secretas, vai sendo iniciado mais pelas imagens do que pelos discursos, embora uns preparem os outros. No final, Tânia Farias, uma Cassandra vertiginosa, lançará com olhos de fogo seu apelo contra a guerra.
Mas antes, no ritual da Deusa Mãe, entre vinho e perfumes, o amor faz baixar docemente as cabeças e inunda a cena como um rio. No público, um casal se beija. Por esta noite, Kassandra será ouvida.
O crítico Sergio Salvia Coelho viaja a convite do festival
Especial
Confira o que acontece no Festival de Teatro de Curitiba
Crítica: "Kassandra" celebra não-guerra
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Enviado especial da Folha de S.Paulo a Curitiba
"As palavras morrem diante das imagens", diz Kassandra, a profetiza em quem ninguém quer acreditar. Em época de guerra, como se fazer ouvir? Com texto ou imagem? Tentando combinar ambos, à lucidez apolínea de Brecht vem se unir o ritual dionisíaco de Artaud em muitas montagens do festival.
Em "Opus 69", a indignação do autor e diretor curitibano Guilherme Durães contra a tortura de mulheres pela ditadura brasileira jorra em um texto alucinado e transtornante, como uma hemorragia. Ousada síntese de "Hamlet" e "Valsa nº 6", ritualiza a tomada de consciência de uma menina ao descobrir simbolicamente uma caveira enterrada em seu próprio quintal.
Por seu lado, Fransérgio Araújo, ator do Teatro Oficina em sua primeira direção, resgata "Querô, uma Reportagem Maldita", de Plínio Marcos, de um registro naturalista do qual a peça já não necessita mais. Faz a história do menino de rua baleado em um bordel girar em torno de um círculo de baldes vermelhos, como um candomblé trash, elevando sua mãe prostituta à condição de uma deusa mãe.
Isso não quer dizer que a ritualização baste para atingir a platéia. Muito pelo contrário: nas duas montagens, o elenco jovem tem uma tendência a se inflamar demais com o discurso, caindo na armadilha narcisista de se entregar à euforia, não ao entusiasmo. Dioniso pede interiorização, e Artaud precisa de Stanislavski como Brecht precisa de Artaud.
Síntese
Em "Kassandra in Process", a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz faz valer seus quase 30 anos de estrada para tentar essa síntese.
Mesclando as histórias da guerra de Tróia, vista do ponto de vista dos troianos --e sobretudo de sua princesa Cassandra, que desautoriza com altivez a arrogância masculina--, a textos de Albert Camus, Samuel Beckett, rituais indígenas e indianos, essa "celebração" promove uma análise implacável da estupidez sempre repetida da guerra com mantras e produção luxuosa.
O público, conduzido por Deusas e Heróis através de salas secretas, vai sendo iniciado mais pelas imagens do que pelos discursos, embora uns preparem os outros. No final, Tânia Farias, uma Cassandra vertiginosa, lançará com olhos de fogo seu apelo contra a guerra.
Mas antes, no ritual da Deusa Mãe, entre vinho e perfumes, o amor faz baixar docemente as cabeças e inunda a cena como um rio. No público, um casal se beija. Por esta noite, Kassandra será ouvida.
O crítico Sergio Salvia Coelho viaja a convite do festival
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