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20/09/2000 - 05h00

Mário de Andrade no divã de Freud em mostra brasileira

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ANDRÉ SINGER, da Folha de S.Paulo

Uma exposição brasileira, que será montada junto com a mostra internacional "Freud: Cultura e Conflito" vai revelar ricas e surpreendentes conexões entre o movimento modernista de Mário e Oswald de Andrade e a obra do mais famoso intelectual que Viena produziu.

Intitulado "Brasil: Psicanálise e Modernismo", o segmento idealizado pelo psicanalista Leopoldo Nosek será acoplado ao material que vem de Washington para o Masp em 2 de outubro. Dos mais de 300 documentos e obras que serão expostos, chamam a atenção, sobretudo, os que iluminam a profunda imbricação entre Mário de Andrade (1893-1945) e o pensamento de Freud.

Destaca-se também a profunda influência da psicanálise sobre o pintor Flávio de Carvalho (1899-1973).

O vínculo de Mário com a psicanálise só não chegou ao ponto de ele próprio submeter-se a uma. "Mas, com os conhecimentos psicanalíticos imperfeitos que tinha, ele se auto-analisou em profundidade", conta a professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) Gilda de Mello e Souza, a maior autoridade em Mário de Andrade junto com a professora de literatura da USP Telê Porto Ancona Lopez.

Docente aposentada de estética, Gilda é prima em segundo grau de Mário. Mais do que isso, entre 1930 e 1943 viveu na mesma casa em que o primo, 25 anos mais velho, morava com a mãe, uma tia e a irmã mais nova. Quando o escritor morreu, em 1945, Gilda havia desenvolvido com ele uma profunda relação intelectual. "A ligação com a psicanálise é decisiva para entender a biografia e a obra de Mário", afirma Gilda.

O assunto, já levantado, por exemplo, no excelente livro de Moacir Werneck de Castro, "Mário de Andrade, Exílio no Rio" (Rocco, 1989), está à espera de um estudo definitivo. "Há um grande trabalho de rastreamento a ser feito", diz Telê, que organiza, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, os arquivos do escritor.

A pesquisa para a exposição do Masp, desenvolvida por um grupo de 20 psicanalistas e coordenada por Maria Ângela Moretzsohn, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, ajudou a descobrir mais alguns elos da afinidade entre Mário e Freud. Mas, para além dos documentos em ordem cronológica que serão exibidos no Masp -em "Paulicéia Desvairada" (de 1921), por exemplo, Mário já escrevia sobre a censura "descoberta por Freud" -, há uma fascinante tese ainda a ser comprovada.

Em resumo, trata-se do seguinte. Como se sabe, Mário de Andrade morreu solteiro. Os registros biográficos mais confiáveis falam de quatro grandes amores femininos. Alguns deles, platônicos. Apesar disso, a hipótese de uma suposta homossexualidade espalhou-se. Nada nos documentos publicados até agora confirma o boato.

Na verdade, não importa se Mário era hetero, homo ou bissexual. A auto-análise, que aparece na volumosa correspondência, revela um homem para quem o sexo ficou, por assim dizer, irrealizado.

Ao falar de sua sensualidade, Mário escreve a uma amiga (Oneida Alvarenga), em 1940: "O importante é verificar que não se trata absolutamente dessa sensualidade mesquinhamente fixada na realização dos atos do amor sexual, mas de uma faculdade que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é vaga, incapaz de se fixar numa determinada ordem de prazeres que nem mesmo são de ordem física. Uma espécie de pansexualismo, muito mais elevada e, afinal de contas, casta do que se poderia imaginar".

Não por acaso, o primeiro romance escrito por ele chama-se "Amar, Verbo Intransitivo". Ou seja, o amor que não tem objeto, como nota, em belo achado, Werneck de Castro.

Na biblioteca da casa do escritor, na rua Lopes Chaves, 546, em São Paulo, foram encontrados sete livros de Freud em francês, lidos e grifados por Mário. Hoje estão guardados como relíquias no Instituto de Estudos Brasileiros.

O mais marcado dos volumes é o "Trois Essais sur la Théorie de la Sexualité" (Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade). Ele contém palavras assinaladas e acompanhadas de uma versão para o português escritas a lápis por Mário. Uma delas é "refoulement", normalmente traduzida por recalque. Mas o escritor anotou ao lado: "sequestro".

A idéia de sequestro, no sentido de repressão de um sentimento, vai aparecer em diversas passagens dos escritos andradinos. Numa carta-crítica ao livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade, "Alguma Poesia", em 1930, ele diz: "(...) Noto dois sequestros que frequentam o seu livro. Um deles você conseguiu sublimar (no sentido freudiano) com "humour" e ficou magnífico. É o que chamarei de "sequestro da vida besta". O outro, o "sequestro sexual", que é muito mais curioso, você não conseguiu propriamente sublimar (...)".

A idéia de sequestro, tão importante para a vida de Mário, que teria recalcado a sexualidade dele mesmo, acaba por entrar na visão que o escritor forma a respeito de um aspecto da cultura brasileira. Ele acredita que uma das chaves para compreender o Brasil está no fato de que, ao virem para cá, os navegantes deixaram as mulheres na Europa.

"O sequestro, no sentido de recalque, de transferência e de sublimação do sentimento amoroso, marca a literatura oral lusitana e brasileira", explica Telê. "Como a onda do mar, o desejo recua e volta na forma de símbolos como a sereia, as bandas do além e a mulher no barquinho que se afasta sempre do navegante."

Essas idéias estão em uma conferência inédita chamada "O Sequestro da Dona Ausente", que ele proferiu em São Paulo na década de 30. Na platéia estava presente Dina Lévi-Strauss, mulher do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Ela trabalhava com Mário no Departamento de Cultura.

"Embora não seja a palavra que se use comumente, sequestro me parece uma linda variante para recalque", comenta a psicanalista Moretzsohn.Quem sabe, além de ter absorvido em profundidade a psicanálise ao elaborar o modernismo, Mário de Andrade acabe por influenciar a própria psicanálise no Brasil. "O fato de ele ser um poeta fez com que usasse o termo com um acréscimo de sentido", diz Gilda de Mello e Souza.

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