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13/05/2004 - 05h49

Festival de Cannes traz "soco no estômago" de Almodóvar

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SÉRGIO DÁVILA
Enviado especial a Cannes

Com um soco numa mão e um carinho na outra. Foi assim que o Festival de Cannes recebeu os visitantes de sua 57ª edição ontem, no balneário francês que lhe empresta o nome, exibindo na primeira sessão de cinema e em sua abertura oficial o novo filme de Pedro Almodóvar, "La Mala Educación" (a má educação, um jogo de palavras com os que não têm educação e os que foram educados de maneira errada).

Polêmico, forte, bem feito, o filme inédito do diretor espanhol de 52 anos é um título digno do mais prestigioso festival de cinema do mundo, que de quebra viu a ameaça de greve de trabalhadores técnicos ser dissolvida num acordo de última hora.

Ao narrar três triângulos amorosos diferentes, que se passam em 1964, 1977 e 1980 e acabam envolvendo as mesmas quatro pessoas, o 16º longa de Almodóvar faz uma bonita homenagem ao gênero noir norte-americano ao mesmo tempo que desfere uma bofetada certeira na prática da Igreja Católica de varrer para debaixo do tapete a prática criminosa de pedofilia de alguns de seus membros. Sobram criticas para a classe artística e até ao Ministério da Cultura espanhol.

Ignácio (como o santo de Loyola) e Enrique são dois colegas de dez anos que se apaixonam enquanto estudam numa escola católica; descobertos, o segundo será expulso pelo padre Manolo, que comanda a instituição e não quer dividir o amor do primeiro --nem a possibilidade de continuar assediando-o sexualmente. Os três vão se encontrar anos mais tarde, quando Enrique virou um jovem diretor de sucesso, o pároco largou o hábito e Ignácio escreveu um texto em que conta toda a história.

Exibido fora de competição (Almodóvar foi melhor diretor e prêmio especial do júri em Cannes em 1999, com "Tudo sobre Minha Mãe"), o thriller gay é, ao lado do imediatamente anterior, "Fale com Ela" (2002), o filme mais maduro do espanhol, almodovariano da abertura ao final, com seus excessos, cores fortes, flerte com a marginalidade e trilha sonora muito bem cuidada.

Duas cenas devem entrar para a lista das mais perturbadoras do cinema recente e falam mais sobre a onda de denúncias de pedofilia que abala a Igreja Católica do que dez editoriais do "New York Times". Na primeira, acompanhado pelo padre molestador ao violão, Ignácio canta uma versão de "Moon River" momentos antes de ser atacado pela primeira vez, enquanto os coleguinhas nadam, despreocupados. É a perda da inocência, da infância e da chance de vida normal.

Na outra, canta para o mesmo padre no dia do aniversário dele outra versão espanhola, desta vez de "Torna a Sorrento", depois de ser entregue como um presente por um cúmplice do religioso. O olhar guloso do padre Manolo e a desfaçatez de seus colegas de igreja chegam a causar engulho.

"La Mala Educación" confirma o rumor que cercava a véspera da abertura de Cannes e colocava Gael García Bernal no posto de candidato a principal intérprete masculino desta edição. O ator mexicano, que segundo Almodóvar tem o sorriso de Julia Roberts, mostra versatilidade em três papéis, mas é como o travesti Zahara que brilha mais, uma "femme fatale" obrigatória do gênero noir, só que invertida.

Quanto às outras críticas, são bem colocadas. Em certo momento, Enrique diz: "Não há nada que me excite menos do que um ator desesperado por trabalho" (o próprio Almodóvar repetiria a afirmação depois, em conversa com os jornalistas). Em outra hora, o mesmo personagem pergunta por que não recebeu uma importante carta. "Eu a remeti ao Ministério da Cultura", justifica a interlocutora. "Ah, foi por isso", devolve ele.

(Em 2002, o órgão do governo espanhol, ainda na gestão do premiê conservador José María Aznar, decidiu não escolher "Fale com Ela" como a obra oficial indicada pela Espanha para tentar concorrer ao Oscar de filme estrangeiro. O boicote não adiantou: o longa seria indicado em duas categorias nobres, diretor e roteiro, ganhando a última.)

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