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10/06/2004 - 06h18

Shakespeare propõe trégua em área de guerra de tráfico

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LUIZ FERNANDO VIANNA
da Folha de S.Paulo, no Rio

Kelly Costa Magalhães, 23, moradora de Vigário Geral, estava feliz na noite de terça-feira. "Abracei com força três amigas de Parada de Lucas que eu não via há um tempão", festejava ela, enquanto assistia à leitura de "Antônio e Cleópatra", de Shakespeare, realizada na fronteira entre as duas favelas da zona norte do Rio.

O evento permitiu que, por três horas, a "Faixa de Gaza" se tornasse uma "Praça da Paz", como disse o coordenador-geral do Grupo Cultural Afro Reggae, José Júnior, idealizador da noite histórica. A divisa entre Vigário e Lucas é chamada pelo nome do território palestino ocupado por Israel porque os traficantes das duas favelas, de facções diferentes, estão em guerra há 21 anos. Vigário é do Comando Vermelho, Lucas é Terceiro Comando. Moradores de um lado são proibidos de passar para o outro.

"Essa fronteira vai ser transformada num corredor cultural. Porque a gente quer e a gente merece", disse José Júnior, depois da leitura, à platéia de cerca de mil pessoas que foi ao Ciep Mestre Cartola --cujas paredes têm várias perfurações de bala. Logo depois da fala de Júnior, ficou claro que a transformação do lugar não será fácil.

Repetindo o que já tinham feito durante a leitura, traficantes de Parada de Lucas soltaram uma grande quantidade de fogos de artifício. A demonstração simbólica de força provocou, em biroscas que ficam na divisa, discussões acaloradas entre alguns moradores das duas favelas. Integrantes do Afro Reggae intervieram e nada grave aconteceu.

Barulho de tiros

Ao lado da área do Ciep onde estavam atores, jornalistas e convidados, tiros foram ouvidos, gerando minutos de tensão. Todos deixaram o lugar em segurança graças, também, à escolta do Afro Reggae --embora passando por traficantes fortemente armados.

Apesar do final pouco amistoso, elenco e organizadores do evento estavam satisfeitos em terem dado um primeiro passo na criação de alternativas à situação de guerra vivida pelos moradores. "Estamos desvirginando um projeto. Como o [José] Júnior disse para nós, só daqui a uns cinco anos os frutos desse trabalho vão aparecer", disse Maria Padilha, que encabeçou um elenco formado por Chico Diaz, Guilherme Leme, Sílvia Buarque, Guida Vianna, Ricardo Blat e outros. A direção foi do inglês Paul Heritage.

Apresentada por Luciano Huck, a leitura de "Antônio e Cleópatra" foi o primeiro evento do projeto Parada Geral, que levará lazer e atrações culturais --como a exibição do filme "Cazuza - O Tempo Não Pára"-- à fronteira entre as duas favelas.
"Normalmente não acontece nada aqui. Então, se tiver mais coisas como essa, vai ser muito legal", aprovou Carla Souza, 20, de Vigário. "Hoje foi bom e, se continuar, vai ser ótimo. O que nós queremos aqui é paz", disse Damiana Tomaz de Medeiros, 63, moradora de Lucas.

O objetivo da integração foi atingido, mas houve percalços técnicos. Além da interrupção por um minuto por causa dos fogos ("Eu achei que eram tiros", afirmou Maria Padilha depois), não era possível ouvir bem os atores de todos os pontos do Ciep. Como a proposta era que o elenco estivesse sempre com o texto à mão, por se tratar de uma leitura, a relação palco-platéia foi um pouco fria, também por causa da dificuldade do texto de Shakespeare.

"Foi uma guerra para a gente e para vocês também. Mas foi uma experiência maravilhosa", disse Maria Padilha ao público. "Tenho certeza de que a gente vai melhorar e de que vocês vão poder gostar e entender melhor o que estamos fazendo. Às vezes o silêncio é mais importante do que o grito e o riso", concluiu ela, numa referência à desatenção da platéia em alguns momentos.

Além de uma temporada comercial no Teatro do Leblon, o elenco fará, entre junho e julho, apresentações nas favelas da Rocinha, de Cidade de Deus e do Cantagalo. Além de "Antônio e Cleópatra", outra peça de Shakespeare, "Medida por Medida", faz parte do repertório.

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