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26/09/2000 - 04h10

"O Auto da Compadecida" é o novo cinema brincante

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da Folha de S.Paulo

O uso dizer : "O Auto da Compadecida" é o melhor produto dramático que a TV Globo realizou em 35 anos. A TV costuma fazer suas novelas e seriados dentro da tradição do naturalismo psicológico do cinema americano, na linha das velhíssimas (e infalíveis) regras aristotélicas da narrativa que, desde a Grécia até Hollywood, nunca decepcionou produtores.
Eurípedes e David Selznick sempre se deram bem na bilheteria.

No entanto, nos anos 60, a TV, espontaneamente, sem intenções estéticas, ajudou a criar uma linguagem mais veloz e livre para o cinema. A TV, que vinha com a pecha de "destruir" o cinemão, acabou contribuindo para renová-lo. Sente-se essa influência de linguagem em cineastas comerciais como Frankenheimer e até em eruditos estruturalistas da nouvelle vague, como Godard.

A escritura da televisão, apesar de sua ignorância estética, soube retratar a aceleração do mundo atual com mais precisão do que a lenta fluência do cinema tradicional. Há 40 anos, no seio da revolução gráfica e audiovisual, a TV influenciou muito mais o Godard do que o Godard influenciou a TV. Na tela e na telinha, o mundo ficava mais simultâneo, mais descontínuo, interrompido, com montagens de eventos fragmentados, em vez de uma sucessividade lógica.

No entanto, essa e outras "revoluções" duraram pouco tempo. Quando parecia que o cinema ia se libertar do jugo narrativo do naturalismo psicológico, ficou claro que Hollywood e os mercados nunca iriam permitir tal liberdade criativa. E a regra de ouro do princípio, meio e fim feliz voltou a ser imposta, mesmo disfarçada de "atonalidade contemporânea" por meio da impostura dos "efeitos especiais".

A restauração do cinema começa, claro, nos anos 70, a década da recaretização de tudo, com o filme (lindo, aliás) "O Último Tango em Paris", no qual Bertolucci mata o pai Godard e o avô Brecht, já ameaçados desde "O Conformista".

Mas, se essa linguagem foi proibida no telão, ela ficou dissolvida na
TV, como o idioma corriqueiro da publicidade e do videoclipe, que não deixam traço algum dos debates estéticos que provocaram na época.

No entanto, na TV Globo, surge nos anos 70 o programa "Armação Ilimitada", idealizado por Daniel Filho, Antonio Calmon, Patrícia Travassos e Nelson Motta e dirigido por Guel Arraes. Esse seriado para adolescentes teve uma grande importância, pois libertou a narrativa das sequências e as personagens das motivações críveis e da moral familiar.
O que surgiu como comédia de surfe virou sem querer um marco na TV. "O Auto da Compadecida" é filho de "Armação Ilimitada" com as trapalhadas medievais de saltimbancos populares.

Agora, o "Auto" foi transferido para película de cinema e está provocando uma enchente nos cinemas. Eu creio que o resultado desta operação TV-filme inova formalmente o cinema no Brasil.

A "mise-en-scène" de cortes frenéticos, com captação de várias câmeras simultâneas, cria uma incessante tarantela de fragmentos que compõem um carnavalização maravilhosa de situações brasileiras, enquanto a ruptura com a psicologia naturalista e a adesão aos tipos clássicos e picarescos liberta-nos da verossimilhança e da identificação projetiva da cena burguesa.

Nessa transferência da minissérie de TV para cinema, Guel Arraes, conscientemente ou não, consegue uma coisa rara e que se fazia tardar: a retomada de uma postura épica no cinema brasileiro, tendência já apontada pelo "Carlota Joaquina", de Carla Camuratti.

O público assiste a "O Auto da Compadecida" rindo de satisfação, reencontrando um universo inocente, irreverente, herança dos autos medievais de feira e das festas brincantes do folclore. A alegria nas salas é da mesma qualidade das cantigas de cordel nas feiras, dos "galopes à beira-mar", dos forrós, do teatro de mamulengos. Essa foi a maior contribuição de Ariano Suassuna para nossa literatura: não a popularização do erudito, mas o aprofundamento do popular. Guel Arraes entende e amplia essa atitude, com uma "mise-en-scène" que atualiza as origens históricas desse tipo de raconto clássico com raízes em Gil Vicente, Lope de Vega, atravessando a sátira de tonalidades cervantinas.

Os atores seguem o mesmo ritmo das imagens e sente-se que eles estão trabalhando em seu elemento ideal, em um mamão-com-açúcar histriônico, fazendo o que sua arte sempre demandou: a pura tradição mímica, que vai das "grotesqueries" rabelaisianas até os ademanes da "commedia dell'arte".

O reencontro dessas origens clássicas deve ter estimulado os atores, que estão simplesmente geniais no filme. A extraordinária interpretação de Matheus Nachtergaele é seguida de perto por Selton Mello, Denise Fraga, Diogo Vilela, Marco Nanini e pelo filho do Milton Gonçalves (cujo nome eu não sei) no papel de Cristo negro. Fernanda Montenegro e Luis Mello surgem ao final com participações maravilhosas.

Ator é para isso, para recriar a vida pelo gesto e pela fala, para retratar o ridículo do comportamento social e não para ficar "emocionando" burguês no escurinho. Aliás, nossos atores cômicos e os elencos de apoio são bem mais talentosos do que o bolorento olimpo de divas e galãs.

"O Auto da Compadecida" mostra como a cultura de massas, a chanchada, o burlesco e até o teatro infantil podem fornecer enriquecimento formal para a grande arte. Prevejo um grande sucesso para esse filme, aqui e no exterior. É bom ver que ainda há um tipo de cinema que só pode ser feito no Brasil.

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