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31/07/2004 - 04h21

Naipaul revela os fantasmas de uma África dilacerada

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MARCELO PEN
crítico da Folha

Em determinado momento de "Uma Curva no Rio", do Prêmio Nobel de 2001, V.S. Naipaul, o domínio árabe na África Central é descrito como a "luz de uma estrela, que ainda viaja depois da extinção da estrela".

O protagonista do romance, Salim, não é árabe, e sim descendente de indianos muçulmanos, mas mais de uma vez compara-se ao grupo de primeiros colonizadores da África, que franquearam a chegada de seus antepassados ao continente.

Os árabes, assim como a família de Salim, tinham o costume de manter escravos. Tratava-se, segundo ele, de hábito arraigado, que não era visto como um mal nem pelos senhores nem por seus servos. Mas era um costume bárbaro, na óptica dos segundos invasores da África, os europeus, e foi duramente combatido.

Quando o romance se inicia, no início da década de 60, o continente passa por uma onda de independência, e os "homens brancos", assim como muitos árabes, indianos, persas, além de milhares de africanos, são mortos em carnificinas selvagens. Ódios tribais acirram os conflitos até que uma nova ordem pós-colonial é finalmente instaurada.

O romance é dividido em quatro partes, que descrevem, num movimento de ascensão e queda, o rápido florescimento econômico posterior à independência e o caos a que retorna o país, após a guinada nacionalista do novo presidente, alcunhado de Grande Homem.

A curva do rio a que alude o título refere-se "ao ponto mais avançado que os árabes haviam chegado no século anterior". A cidade que se instala às suas margens é um centro de trocas. É ali que afluem as tribos das florestas e os "estrangeiros" provenientes do litoral leste. É ali que o Grande Homem manda construir um monumental centro universitário, onde os descendentes tribais confrontam sua cultura com as idéias externas, sobretudo o marxismo.

Nesse contexto conturbado, Salim associa-se à luz de uma estrela morta. Suas origens não podem ser recuperadas. A certa altura, um amigo dele, também descendente de indianos, vai à embaixada da Índia, à procura de um cargo diplomático. Abaixo dos retratos de Gandhi e Nehru, o embaixador o destrata: "Como poderíamos aceitar alguém com a lealdade dividida?".

Tal como o amigo, Salim é um "homem sem vínculos". Sua existência é uma constante busca de identidade. Quem ele é? Africano? Estrangeiro? Representante de antigos colonizadores? Adepto relutante da nova ordem? "Uma Curva..." trata de existências fantasmáticas numa África dilacerada entre a barbárie recordativa de "O Coração das Trevas" e um impulso febril de modernização.

Já para o fim do romance, Salim passa uma breve temporada em Londres. Lá ele avista uma milionária árabe, antecedida por um rapaz que lhe carrega as sacolas de compra. Sua familiaridade com os costumes islâmicos o faz adivinhar: é um escravo. A passagem sem dúvida ajuda a alimentar as críticas dos detratores de Naipaul, que o acusam de macular a imagem dos povos coloniais.

Mas a verdade é que Naipaul não faz concessões. Os africanos são desesperados, instáveis e violentos. Os europeus são ladinos, neuróticos e desinformados. E os muçulmanos se apegam a tradições que lhes outorga o direito de oprimir suas mulheres e conservar escravos.

Numa entrevista dada mais ou menos na mesma época em que transcorre a ação do romance, o pensador Roland Barthes afirmou que não acredita haver uma real literatura de esquerda. Por sua própria estrutura, a ficção só estimularia as respostas, mas não poderia fornecê-las.

Pode-se dizer que o mesmo se dá nos romances de Naipaul. O choque cultural, expressão hoje em dia tão criticada, mas fundamental se quisermos entender os livros do escritor, instaura uma análise da alma humana, dos motores que a tornam tão misteriosa, por vezes cruel, por vezes mesquinha, por vezes comovente. Não há respostas, mas dezenas de interrogações.

Avaliação:

Uma Curva no Rio
Autor:
V.S. Naipaul
Tradutor: Carlos Graieb
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 45,00 (314 págs.)

Especial
  • Arquivo: veja o que já foi publicado sobre V.S. Naipaul
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