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02/08/2004
-
17h28
IVAN DELMANTO
especial para a Folha Online
Em Cobija, cidade boliviana separada de Brasiléia (AC) por um rio, o Brasil é considerado o império do continente sul-americano. A rivalidade com o outro lado da fronteira é grande, embora a dependência econômica seja mútua. Leio o relato do pesquisador do Teatro da Vertigem:
Quinta, 29/7/2004 - Cobija: A Expedição chega à Bolívia
Cobija é o outro lado de Brasiléia. As duas cidades são separadas por um rio.
Como Brasiléia, a vida em Cobija surge marcada pelo rio, pelos fluxos incessantes do comércio, das águas dos pequenos negócios, que cruzam a fronteira a todo instante. O rio é a fronteira do tempo, marca a história da guerra entre os dois países e nas suas margens ocorreu a única derrota do Exército brasileiro. O rio permanece como testemunha e suas águas espalharam-se pelos cantos de Cobija.
Nas conversas com os bolivianos, a memória permanece correndo em seu leito, a rivalidade com o outro lado da fronteira é marcante, apesar da mútua dependência econômica. O Brasil é considerado os Estados Unidos da América do Sul, o império do continente. O poder local, assim como o brasileiro, faz questão de manter viva a versão dos vencidos, e na praça central de Cobija há uma estátua de um índio boliviano apontando uma flecha de fogo para o território brasileiro.
Mas o rio também é testemunha, no seu frágil e estreito percurso de água, da identidade dos dois países em suas misérias, como se estivessem separados apenas por um delicado fio líquido, memória. Na Igreja Central de Cobija, o rio esparramou suas águas onde o visitante pode contemplar o Cristo Seringueiro.
No altar, cercado por uma cortina de ficção que tem as cores da bandeira boliviana, há painéis representando a concretude da história que une os dois países e a ocupação de suas florestas. Há testemunhos de injustiças seculares.
Jesus Cristo é pintado com os traços de um índio boliviano e está crucificado em uma seringueira. Suas chagas são os cortes diagonais feitos tradicionalmente nesta árvore, como se de seu ventre e de seus pulsos explorassem o látex. Inscrito na coroa de espinhos um letreiro: "Jesus Seringueiro, crucificado por pretender organizar a comunidade onde trabalhava e vivia."
Em outros painéis, a ressurreição de Cristo é um vôo protegido pela raiz da árvore seringueira, e os três reis magos trazem presentes iluminados por porongas --lanternas colocadas sobre um suporte que é utilizado na cabeça dos seringueiros. A estátua da Virgem Maria também tem traços de índia.
Em Cobija, a comunidade incorporou a religião ao fluxo de seu rio e de seu sangue derramado. Talvez por isso sua crença pareça pulsar, escorrer em suas águas turvas.
Ivan Delmanto é pesquisador e coordenador teórico e de dramaturgismo do projeto Vertigem BR3, do Teatro da Vertigem. Escreve periodicamente um "Diário de Viagem" para a Folha Online, narrando a experiência do grupo pelo interior do Brasil
Especial
Acompanhe o diário de viagem do Teatro da Vertigem
Arquivo: saiba o que já foi publicado sobre o Teatro da Vertigem
Cidade boliviana visitada por grupo de teatro vê Brasil como império
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especial para a Folha Online
Em Cobija, cidade boliviana separada de Brasiléia (AC) por um rio, o Brasil é considerado o império do continente sul-americano. A rivalidade com o outro lado da fronteira é grande, embora a dependência econômica seja mútua. Leio o relato do pesquisador do Teatro da Vertigem:
Quinta, 29/7/2004 - Cobija: A Expedição chega à Bolívia
Cobija é o outro lado de Brasiléia. As duas cidades são separadas por um rio.
Como Brasiléia, a vida em Cobija surge marcada pelo rio, pelos fluxos incessantes do comércio, das águas dos pequenos negócios, que cruzam a fronteira a todo instante. O rio é a fronteira do tempo, marca a história da guerra entre os dois países e nas suas margens ocorreu a única derrota do Exército brasileiro. O rio permanece como testemunha e suas águas espalharam-se pelos cantos de Cobija.
Nas conversas com os bolivianos, a memória permanece correndo em seu leito, a rivalidade com o outro lado da fronteira é marcante, apesar da mútua dependência econômica. O Brasil é considerado os Estados Unidos da América do Sul, o império do continente. O poder local, assim como o brasileiro, faz questão de manter viva a versão dos vencidos, e na praça central de Cobija há uma estátua de um índio boliviano apontando uma flecha de fogo para o território brasileiro.
Mas o rio também é testemunha, no seu frágil e estreito percurso de água, da identidade dos dois países em suas misérias, como se estivessem separados apenas por um delicado fio líquido, memória. Na Igreja Central de Cobija, o rio esparramou suas águas onde o visitante pode contemplar o Cristo Seringueiro.
No altar, cercado por uma cortina de ficção que tem as cores da bandeira boliviana, há painéis representando a concretude da história que une os dois países e a ocupação de suas florestas. Há testemunhos de injustiças seculares.
Jesus Cristo é pintado com os traços de um índio boliviano e está crucificado em uma seringueira. Suas chagas são os cortes diagonais feitos tradicionalmente nesta árvore, como se de seu ventre e de seus pulsos explorassem o látex. Inscrito na coroa de espinhos um letreiro: "Jesus Seringueiro, crucificado por pretender organizar a comunidade onde trabalhava e vivia."
Em outros painéis, a ressurreição de Cristo é um vôo protegido pela raiz da árvore seringueira, e os três reis magos trazem presentes iluminados por porongas --lanternas colocadas sobre um suporte que é utilizado na cabeça dos seringueiros. A estátua da Virgem Maria também tem traços de índia.
Em Cobija, a comunidade incorporou a religião ao fluxo de seu rio e de seu sangue derramado. Talvez por isso sua crença pareça pulsar, escorrer em suas águas turvas.
Ivan Delmanto é pesquisador e coordenador teórico e de dramaturgismo do projeto Vertigem BR3, do Teatro da Vertigem. Escreve periodicamente um "Diário de Viagem" para a Folha Online, narrando a experiência do grupo pelo interior do Brasil
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