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27/08/2004
-
05h58
JOSÉ GERALDO COUTO
Colunista da Folha de S.Paulo
Carlos Reichenbach continua buscando "o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura" de que falava Mário Faustino.
Em "Garotas do ABC", a violência e a ternura, os dois pólos que movimentam o cinema do diretor, estão delineados com nitidez. De um lado, há o universo feminino, composto por um grupo de operárias têxteis em que se destacam Aurélia (Michelle Valle), Paula (Natália Lorda) e Antuérpia (Vanessa Alves). Do outro, está um bando de neonazistas boçais, liderados por um confuso "intelectual" de direita (Selton Mello).
Esses dois extremos se tocam de diversas maneiras. A mais paradoxal delas é o namoro entre a mulata Aurélia e um neonazista (Fernando Pavão). O drama de Aurélia é um dos centros da narrativa, mas não o único.
Há, além dele, as relações complexas entre as garotas têxteis (e entre estas e a fábrica), a agressão dos neonazistas aos negros e nordestinos, a investigação policial de um atentado cometido pelo bando, um esboço de mobilização sindical, o baile no Clube Democrático etc.
Talvez por conta das inúmeras modificações que o projeto do filme sofreu desde sua gênese e dos 45 minutos cortados na versão final, o tratamento desses vários focos de interesse é desigual, e nem sempre a forma como eles se articulam é convincente.
Mas isso não é um grande problema. O cinema de Carlos Reichenbach sempre extraiu muito de sua força do desequilíbrio e da mistura de gêneros.
Em "Garotas do ABC" salta aos olhos outra marca do cineasta, que é a justaposição entre um certo naturalismo (do ambiente, sobretudo) e a estilização da "mise-en-scène". Esta última se manifesta especialmente nas citações e referências literárias, históricas e cinematográficas.
Algumas dessas citações são meras homenagens, sem grande incidência sobre a construção do filme. Exemplos: o militante sindical (Dionisio Neto) tem o nome do cineasta André Luís Oliveira, uma pichação feita pelos neonazistas inverte uma frase do "Bandido da Luz Vermelha" etc.
Em outros casos, a referência intertextual é constituinte do filme. A cena em que a câmera gira vertiginosamente em torno de Selton Mello numa pedreira, e que culmina com a descoberta do sigma impresso em suas costas (referência dupla ao integralismo e a "M, o Vampiro de Dusseldorf") é uma das mais inspiradas, bem como a do carro dos neonazistas avançando na noite ao som de Wagner.
Mais problemática é a seqüência em que um justiceiro (Alessandro Azevedo) executa alguns neonazistas. A estilização, ao aproximá-lo do Corisco de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", acaba lhe conferindo uma perigosa aura heróica.
Mas o filme é muito maior que isso. Nestes tempos de renovada barbárie, "Garotas do ABC" é urgente e necessário.
Garotas do ABC
Avaliação:
Direção: Carlos Reichenbach
Produção: Brasil, 2004
Com: Fernando Pavão, Selton Mello
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco, Lumière e circuito.
Especial
Leia o que já foi publicado sobre o filme "Garotas do ABC"
Em "Garotas do ABC", operárias de Reichenbach resistem à barbárie
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Colunista da Folha de S.Paulo
Carlos Reichenbach continua buscando "o nobre pacto entre o cosmo sangrento e a alma pura" de que falava Mário Faustino.
Em "Garotas do ABC", a violência e a ternura, os dois pólos que movimentam o cinema do diretor, estão delineados com nitidez. De um lado, há o universo feminino, composto por um grupo de operárias têxteis em que se destacam Aurélia (Michelle Valle), Paula (Natália Lorda) e Antuérpia (Vanessa Alves). Do outro, está um bando de neonazistas boçais, liderados por um confuso "intelectual" de direita (Selton Mello).
Esses dois extremos se tocam de diversas maneiras. A mais paradoxal delas é o namoro entre a mulata Aurélia e um neonazista (Fernando Pavão). O drama de Aurélia é um dos centros da narrativa, mas não o único.
Há, além dele, as relações complexas entre as garotas têxteis (e entre estas e a fábrica), a agressão dos neonazistas aos negros e nordestinos, a investigação policial de um atentado cometido pelo bando, um esboço de mobilização sindical, o baile no Clube Democrático etc.
Talvez por conta das inúmeras modificações que o projeto do filme sofreu desde sua gênese e dos 45 minutos cortados na versão final, o tratamento desses vários focos de interesse é desigual, e nem sempre a forma como eles se articulam é convincente.
Mas isso não é um grande problema. O cinema de Carlos Reichenbach sempre extraiu muito de sua força do desequilíbrio e da mistura de gêneros.
Em "Garotas do ABC" salta aos olhos outra marca do cineasta, que é a justaposição entre um certo naturalismo (do ambiente, sobretudo) e a estilização da "mise-en-scène". Esta última se manifesta especialmente nas citações e referências literárias, históricas e cinematográficas.
Algumas dessas citações são meras homenagens, sem grande incidência sobre a construção do filme. Exemplos: o militante sindical (Dionisio Neto) tem o nome do cineasta André Luís Oliveira, uma pichação feita pelos neonazistas inverte uma frase do "Bandido da Luz Vermelha" etc.
Em outros casos, a referência intertextual é constituinte do filme. A cena em que a câmera gira vertiginosamente em torno de Selton Mello numa pedreira, e que culmina com a descoberta do sigma impresso em suas costas (referência dupla ao integralismo e a "M, o Vampiro de Dusseldorf") é uma das mais inspiradas, bem como a do carro dos neonazistas avançando na noite ao som de Wagner.
Mais problemática é a seqüência em que um justiceiro (Alessandro Azevedo) executa alguns neonazistas. A estilização, ao aproximá-lo do Corisco de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", acaba lhe conferindo uma perigosa aura heróica.
Mas o filme é muito maior que isso. Nestes tempos de renovada barbárie, "Garotas do ABC" é urgente e necessário.
Garotas do ABC
Avaliação:
Direção: Carlos Reichenbach
Produção: Brasil, 2004
Com: Fernando Pavão, Selton Mello
Quando: a partir de hoje nos cines Espaço Unibanco, Lumière e circuito.
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