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03/09/2004 - 07h44

Crítica: A inacreditável alegoria brasileira de João Carlos Martins

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ARTHUR NESTROVSKI
articulista da Folha

As quatro primeiras cenas resumem os mil e um caminhos que se cruzam sugestiva e problematicamente no filme. Na primeira, o pianista João Carlos Martins aparece na sala de seu apartamento em São Paulo, tocando a "Chaconne" de Bach (1685-1750), na transcrição de Busoni, só para a mão esquerda. A cena seguinte se passa num hospital, em 2002, onde o pianista submete-se a tratamento para recuperação dos movimentos da mão. A terceira é o vídeo histórico de um concerto de Martins com a Filarmônica de Los Angeles regida por Zubin Mehta, em 1970. E a quarta mostra o pianista sexagenário trocando passes de cabeça com Pelé, na sacada do apartamento.

A trama de música, doença, glória e celebridade se multiplica ao longo de "A Paixão Segundo Martins", documentário franco-alemão da diretora Irene Langemann, que estréia hoje em cinemas de São Paulo e Rio. É uma história do pianista que vai além da paixão pela música (e pela música de Bach em especial), não só no sentido de que a própria música o leva a superações incríveis, mas também porque outra narrativa se escuta por trás do que está na tela.

O fato de uma pedrinha ter cortado seu braço em 1966, enquanto jogava bola no Central Park, em Nova York, lesando o nervo cubital, soa característico nesse roteiro de inverosimilhanças (verdadeiras), que vão compondo fatidicamente uma tapeçaria de vida. Estava então no auge da fama, aos 26 anos de idade. E o acidente parece mais significativo ainda quando se olha o forro do tapete, uma involuntária alegoria brasileira.

Que um pianista clássico seja incapacitado pela paixão do futebol faria pensar em Machado de Assis. Que esse mesmo pianista abandone, então, sua arte e se devote à Bolsa de Valores --em plena era do "milagre brasileiro", nos anos 70-- faz pensar em Rubem Fonseca. Que o financista retorne depois aos palcos e se veja forçado novamente a largar o piano por problemas na mão, que vire dono de uma construtora e angariador de fundos do candidato a governador Paulo Maluf, e que seja processado pela administração desses recursos já nos traz para as sombras de algum autor ainda não surgido, capaz de dar conta do qüiproquó nacional, em que a mesma figura pode surgir, no fim da fita, em 2003, interpretando o hino brasileiro (com a mão esquerda debilitada e apenas o polegar da direita) num comício de 1º de maio da Força Sindical, apresentado por Paulinho e aplaudido pela multidão.

As coisas são tão mais ambíguas porque a sinceridade musical de Martins fica evidente desde o primeiro instante. Também sua considerável coragem, ao se deixar filmar em cenas de sofrimento físico excruciante, por exemplo, ou ao comentar abertamente o caso Maluf (sem pronunciar este nome, é verdade), ou ao se lamuriar, em tom doído, pela falta de reconhecimento em seu próprio país.

Mas não é estranho, por outro lado, que não haja no documentário um único depoimento de alguém que não seja seu parente, amigo ou associado? Não é constrangedor ver Martins, sem meias palavras, se comparando a Pelé? Não faz falta escutar algum artista ou musicólogo brasileiro? Não seria pelo menos tão importante quanto mostrar o lutador Eder Jofre (de quem Martins promoveu a luta em que reconquistou o título mundial dos pesos leves, em 1973)?

O fato é que "A Paixão Segundo Martins" faz da história pessoal o mais importante num filme onde a música é instrumento de uma experiência humana incomum. E essa história é sempre contada da perspectiva do protagonista. O que talvez não seja ruim, se se tomar o filme também como mais um trabalho de interpretação do pianista (em todos os sentidos da palavra "interpretação"). Vale dizer que a força sentimental do conjunto há de desagradar muita gente, assim como seu Bach. A interpretação dessa interpretação é uma outra história ainda, em que se cruzam memórias e atualidades, apaixonantes e repulsivas, tramando o tapete em frangalhos do Brasil.

Avaliação:

A Paixão Segundo Martins
Direção:
Irene Langemann
Produção: Alemanha, 2004
Com: João Carlos Martins
Quando: a partir de hoje nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex 5 e Cinearte 1

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