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15/01/2005 - 01h50

Leia entrevista com o escritor DBC Pierre, atração da Bienal do Rio

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CASSIANO ELEK MACHADO
Da Folha de S.Paulo

Ele é a Gata Borralheira. Não, melhor, ele é o Patinho Feio da literatura contemporânea. Como tal, era um troncho, um desvalorizado, até desabrochar como uma Gisele Bündchen das letras.

A história de Peter Finlay é, em verdade, quase tão boa quanto a de "borralheiras" e "feios", quase tão boa (ou melhor) do que a de seu próprio romance, "Vernon God Little", que será lançado na próxima semana no Brasil, pela editora Record. Quando saiu, na Inglaterra, em janeiro de 2003, o livro era um livro qualquer, assinado por um tal DBC Pierre. Aos poucos o romance foi crescendo, no boca a boca, resenha a resenha, até ser indicado para a lista inicial do Booker Prize, prêmio mais prestigiado da língua inglesa .

Foi só com "Vernon God Little" já na reta final do Booker que a verdadeira história de seu autor saiu às ruas. Em reportagem bombástica nos círculos das letras, o jornal britânico "The Guardian" revelou que o escritor tinha um passado de altas picaretagens (extraliterárias, diga-se), relações barras-pesadas com heroína e cocaína, um tiro tomado e trapaças como a venda da casa de um amigo sem que este fosse consultado ou recebesse algum tostão.

Nascido na Austrália, criado no México e com vida errante por lugares como os subúrbios de Londres ou o Texas, onde ambienta "VGL", Finlay se escondera neste seu romance de estréia atrás do pseudônimo DBC Pierre, que significa Dirty But Clean Pierre (Pierre Sujo, Mas Limpo).

A brincadeira vinha do apelido de seu tempo de junkie, Dirty Pierre. Finlay, ou DBC Pierre, como queira, agora estava "clean" e a literatura era o modo como ele fazia sua "última tentativa", depois de tentar emplacar como cartunista, cineasta, ou caçador de tesouros no México (sério).

E ele chegou lá. Achou seu baú de moedas de ouro com seu primeiro livro: ganhou o Booker Prize 2003 e seus R$ 250 mil (mais ganhos indiretos, como vendagens "sextuplicadas" de seu livro e venda de direitos para o cinema).

Pierre, 42, hoje morando em uma cidadezinha no interior da Irlanda, pouco aproveitou de toda essa gaita. Usou o que ganhou para começar a pagar credores.

Dirty But Clean, ele diz que hoje é um rapaz respeitável, limpo, limpo. Em entrevista à Folha, a primeira que dá ao Brasil, ele mostra que não chega a ser Pierre, o Totalmente Asséptico. Escalado como primeira grande atração da Bienal do Rio, em maio, ele brinca que seus planos são de, assim que chegar aqui, pegar o maior copo de caipirinha que encontrar e dar um jeito de perder sua passagem de volta. Leia trechos da conversa.

Folha - Você disse ao ganhar o prêmio que o sentimento de culpa foi a única pressão que o levou a escrever. Seu estoque de remorso é grande o bastante para que você continue na literatura?

DBC Pierre - Caceta, eu tenho culpa suficiente para construir catedrais. Verdade que agora a energia está mudando. Existe pressão para que eu fique mais refinado, o que aumenta o desafio. Mas lembre-se que eu tenho sido uma espécie de artista durante toda minha vida, de modo que as idéias e fantasias sempre me acompanharam. Remorso e frustração foram só os que me deram o empurrão para o compromisso e a paciência de me expressar em 300 páginas de palavras, o que não é fácil. Vou te dizer como sinto o que é literatura: escrever é como tentar pintar uma natureza-morta de ratos vivos.

Folha - Vernon é o típico personagem incompreendido. Você também era fundamentalmente um incompreendido?

Pierre - Claro. Tenho a sensação de que em parte fui mal-entendido desde que nasci e de que em parte os humanos de modo geral são preparados para não compreenderem ninguém. Até que nos damos conta de que não compreendemos ninguém porque não compreendemos nem mesmo quem somos.

Folha - Antes de escrever "VGL" você chegou a rascunhar romances ou contos?

Pierre - Não. Contos são uma modalidade muito difícil, um passo em direção à poesia, onde cada palavra é calculadamente importante. Em um romance você tem direito de perder-se dentro de uma pintura mais ampla. Como eu havia tentado pintura, desenho, fotografia eu sempre senti que um dia eu poderia pintar com palavras. Mas sempre projetei esta idéia para um futuro distante, por ser um trabalho tão grande e de tanta disciplina.

Embora eu adore palavras, especialmente seus sons, eu não tenho uma educação verdadeira em literatura, em inglês ou em qualquer outra coisa. Eu sempre tive a sensação de que eu seria derrotado por pessoas mais estudadas se eu tentasse jogar no campo delas.

Foi realmente só a explosiva pressão da vida que me fez tentar a literatura, como último recurso. Uma das situação de vida mais poderosas que existe é não ter nada a perder. Agora tenho de tentar não perder meu poder.

Folha - Seu romance lida com temas barra-pesada como pena de morte, assassinatos em massa em escolas, preconceitos e manipulação da mídia. Mas "VGL" não é um livro pesado. Por que você escolheu assuntos cascudos para fazer uma comédia?

Pierre - Porque são temas tão trágicos que são naturalmente cômicos. Neste livro sinalizo como a realidade é hoje muito mais ridícula do que qualquer ficção. Chegamos à era em que tragédia e comédia se encontram de verdade. O caminho que encontrei foi o único que pude achar para ser realmente amargo e realmente realista.

Folha - O diretor do Booker Prize, John Carey, disse, ao anunciar seu prêmio, que seu livro era o reflexo da relação de fascínio e de alarme que o resto do mundo tinha em relação à América moderna. O que você pensa disso?

Pierre - Concordo com ele. Observar os Estados Unidos de uma forma global é ao mesmo tempo fascinante e assustador porque os EUA são a ponta da linha de nossa cultura e a coisa está se desenrolando sem controle. Assim nos vemos chegando mais e mais próximos daquela área da irracionalidade generalizada. Mas, assim como Vernon, nós sempre guardamos um vestígio de idéia de final feliz em algum lugar de nossas mentes.

Folha - Seu livro me lembrou (e a outros críticos também) uma versão contemporânea de "O Apanhador no Campo de Centeio", de Salinger. Você vê semelhança de "VGL" com este ou outros livros?

Pierre - Não li muito nos anos que cercaram a escrita de "Vernon". Sou um leitor vagaroso e leio muita não-ficção, apenas para satisfazer curiosidades. Mas gosto de literatura e, no final da adolescência tiveram grande impacto em mim obras como "On the Road", de Kerouac, "Declínio e Queda", de Evelyn Waugh, e "A Morte do Caixeiro-Viajante", de Arthur Miller.

Li "O Apanhador" nos tempos de escola e me lembro de ter pensado quão genial era poder escrever uma obra literária do ponto de vista de uma criança qualquer. Isso me deu um sentimento de liberdade muito grande, porque até então eu vinha lendo Chaucer, Milton e Shakespeare, que, quando você é um garoto, é algo como seguir a sua mãe fazendo compras.

Folha - No passado você chegou a fazer literalmente uma caça ao tesouro, no México. Ganhar o Booker de repente teve este sabor?

Pierre - É uma passagem pouco conhecida de minha vida, mas há 20 anos eu realmente fiz parte de uma caravana que tentava achar um vale perdido onde se especulava que havia restos do Império Azteca, incluindo parte de seu tesouro. Meu interesse maior era fazer um documentário.

Literatura é um tesouro bem mais viável. Mas ainda assim para consegui-lo você deve viver em cavernas, e caçá-la todos os dias.

Folha - Você é a primeira grande atração anunciada da próxima Bienal do Livro do Rio. Ouvi dizer que seu próximo romance terá passagens no Brasil. Você já esteve aqui?

Pierre - Veja, venho esperando por toda a minha vida uma oportunidade de visitar o Brasil. Logo que chegar aí vou colocar em prática meu plano de me atracar em algum canto com uma grandiosa caipirinha e dar um jeito de perder minha passagem de volta. Não conheço muito daí, embora tenha lido algo de Rubem Fonseca e de Autran Dourado, mas tenho o feeling de que vou encontrar no Brasil almas muito férteis, com a fertilidade da arte de vocês. No próximo livro, não no que estou fazendo, pretendo sim usar trechos no Brasil _ótima desculpa para mais pesquisa.

Folha - Você vai seguir com seu pseudônimo? Você quer continuar sendo o Pierre Sujo, mas Limpo?

Pierre - Por enquanto sim. Embora aspire a condição de Pierre Limpo, apenas. Não sei se isso será possível depois que eu for para o Brasil. Sou facilmente corruptível diante de mulheres bonitas, música e bebida (graças a Deus).

Folha - É verdade que você está fazendo uma seqüência para "VGL"? Você também está trabalhando no filme do romance?

Pierre - Todos acreditam que sim, que estou fazendo o "VGL 2", mas não é verdade. Quando sentei para fazer "Vernon" pensei nele como uma trilogia --no terceiro o personagem viraria o presidente dos EUA.

Quando fui falar com a editora sobre o plano de uma trilogia eles me disseram para não dar sopa para o azar. Vernon já se sustentava sozinho. Engavetei o projeto.

Atualmente estou finalizando meu segundo romance, algo completamente diferente, um livro sobre globalização que usa um namoro virtual com uma russa.

O filme de Vernon está sendo desenvolvido por Aimée Peyronnet, um grande produtor francês de Hollywood, e por Pawel Pawlikowski, um esquisito diretor polonês-britânico.

Temos todos supervisionado a adaptação e acredito que eles estejam agora começando a selecionar o elenco. No ano passado fomos para o Texas e para o México, procurar também locações. Quero fazer uma ponta no filme, como um idiota sentado no fundo de um ônibus. Posso pegar este papel sem ter de fazer esforços dramáticos.

Folha - Por que você optou por usar nomes de personagens tão esquisitos, como Eulalio Ledesma, Vaine Gurie e Vernon Gregory?

Pierre - Ha há, você sabia que os nomes estranhos todos eram reais? Tirei eles de uma lista de pessoas mortas no Texas no século 19. Com base neles acabei criando alguns outros nomes semelhantes.

Folha - Quão importante foi sua experiência de cartunista para "desenhar" o personagem Vernon?

Pierre - Foi fundamental. O mundo do cartunista envolve aquilo que dizia da tragédia sendo cômica e do lado engraçado de ser humano de modo geral. Acho que ajuda também com o senso de quando e onde se deve exagerar nos traços dos personagens.

Folha - Vernon Gregory Little chega a ser chamado às tantas de Vernon God Little. Seu livro não tem nada que ver com o romance vencedor do Booker "O Deus das Pequenas Coisas", de Arundhati Roy, mas você também não busca de alguma forma, com seu personagem, a divindade de algumas pequenas coisas.

Folha - Um modo de encarar isso, e absolutamente verdadeiro em uma metáfora mais ampla, é que o livro é a voz da jovem América tentando encontrar as promessas que fez para ela mesma.

Pierre - Os Estados Unidos sempre tiveram o tipo de inocência, uma visão de mundo jovem, simplificada pela história, que foi por um bom tempo uma de suas facetas mais charmosas.

O livro tem um lado da jovem América se perguntando: "Que diabos aconteceu?".

Folha - Você termina o livro com um posfácio que tem um "p.s." curioso: "Gumby, ainda quer aquele assassinato?". Você se importaria de contar que assassinato é este que oferece ao tal Gumby?

Pierre - Gumby é um grande amigo, um clássico "Englishman", que me telefonou uma vez no Natal, muito bêbado, e me disse simplesmente: "Se você algum dia ficar fico e famoso você poderia providenciar o assassinato de um certo jogador de cricket?". Eu não vou mencionar o jogador em questão, mesmo por que eu gosto de cricket.
 

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