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11/10/2000 - 05h04

Delírio de Will Self ultrapassa a morte

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SYLVIA COLOMBO, da Folha de S.Paulo

"Eu sei que atingiu meu fígado, o câncer. Posso senti-lo ao descermos a rua e virarmos na Hampstead Lane." Lily Bloom, 65, uma sarcástica senhora judia americana -radicada em Londres a contragosto- está morrendo.

Lily é a protagonista de "How the Dead Live" (Como Vivem os Mortos), o mais recente romance do escritor inglês Will Self, 39.

Autor de uma prosa fantástica que explora vícios da vida moderna -inundados de perversões sexuais, drogas, deformações morais e físicas- Self agora transporta a natureza britânica para uma outra dimensão.
Nesta, os cadáveres levam a imundície mental e espiritual que os acompanharam enquanto viviam.

Lily Bloom, sua personagem, é materialista, não acredita numa vida após a morte. Nem por isso está triste por estar morrendo devido a um tumor e continua apontando e satirizando as imperfeições dos que a rodeiam. Isso inclui médicos, enfermeiras, as duas filhas -que para ela são criaturas ao mesmo tempo incompletas e deterioradas- e até a memória de seus ex-maridos.

Mas Lily Bloom não sabe o que a espera. Depois de morrer, sozinha, num hospital londrino, percebe que as coisas estão longe de terminar. O pós-morte existe e, num primeiro momento, se passa num bairro habitado somente por mortos, ao norte de Londres.

Ali, os cadáveres comem, dormem, se encontram, se relacionam, mas não sentem nem prazer nem dor. Enquanto isso, seus vícios, remorsos e complexos assumem diversas formas e confrontam-se com suas memórias.
Leia os principais trechos da entrevista que Will Self deu à Folha, por e-mail, de Londres, onde vive.

Folha - Seus romances costumam satirizar vícios da sociedade britânica contemporânea. Em "How the Dead Live", eles viajam para o pós-morte. Estes vícios são eternos?
Will Self -
Minha idéia foi especular sobre como seria a morte e a passagem para uma outra vida de uma pessoa materialista, extremamente racional e descrente da possibilidade de transcendência.

Folha - Por que, na passagem da morte para o pós-morte, Lily Bloom é consumida e até satirizada pelos seus próprios vícios?
Self -
O fenômeno com o qual Lily Bloom se confronta depois de sua morte é um produto da deterioração de sua psique por meio de seus próprios componentes negativos. O romance é uma alegoria budista e, ao mesmo tempo, eu quero sugerir que Lily Bloom é um tipo de "toda mulher", extremamente representativa de uma cultura -como eu mesmo- em que a grande maioria das pessoas morre anestesiada por alguma droga (de heroína a Valium). Acho que, se você morre nesse tipo de estupor, é porque também deve ter vivido em um.

Folha - As duas filhas de Lily representam duas facetas da mulher inglesa -Charlotte possui um perfil consagrado (é prática, eficiente e educada), enquanto Natasha seria o lado negro deste estereótipo?
Self -
Espero que os dois personagens não pareçam ser tão estereotipados assim. Elas são dois tipos de indivíduos que encontro na sociedade. Penso em Charlotte como representante de uma grupo particular de mulheres inglesas, de classe média alta, de um momento particular de nossa história -os anos 80 e 90, quando as teorias de mercado livre e o governo de Margareth Thatcher criaram um clima econômico mais competitivo do que antes.

Charlotte é também um exemplo daquele tipo de mulher que está preparada para gastar dinheiro e contratar os últimos avanços da tecnologia para ter um filho dela própria. No final, ela aceita o limite do que o dinheiro pode comprar. É o personagem que chega mais perto da redenção.

Folha - E Natasha?
Self -
Natty é o que é: uma mulher bonita e infernal, uma narcisista e carismática viciada em drogas. Ela é, em certo sentido, um dos pontos complexos da psique de sua mãe -um sintoma transgeracional e neurótico.

Folha - Quando Lily Bloom morre, ganha a companhia de um guia, Phar Lap Jones, um aborígene australiano. Por que um aborígene australiano?
Self -
Phar Lap é um comentador sério de algumas características da vida moderna: a tendência crescente de sermos infantilizados pelo excesso, pelo sexo, pela falência para atingir um crescimento espiritual. Era muito importante que ele fosse membro de um povo tradicional, para quem a indissolubilidade da vida e da morte é um fato consumado.

Folha - Você teve alguma experiência de proximidade com a morte durante o período em que esteve envolvido com drogas? De que forma isso influenciou na construção da trama do livro?
Self -
O vício é uma forma de suicídio. Uma maneira de extinguirmo-nos durante anos. Nesse sentido, ser um viciado sempre me deixou familiarizado com a morte. Mas o mais bizarro da vida de um viciado é que, mesmo quando ele está adotando o comportamento mais ameaçador à vida, ele se sente curiosamente invulnerável. Dessa forma, o viciado é como todo mundo. Todos nós pensamos que vamos viver para sempre, ignoramos a onipresença da morte. Sinto que a minha experiência de recuperação do vício me ajudou a recuperar essa percepção.

Folha - A morte, assim como a loucura, tem sido afastada da percepção coletiva -principalmente a partir do século 18. Como foi a experiência de adotar literariamente o ponto de vista de alguém que está morrendo?
Self -
Escrever em primeira pessoa sobre alguém que está deixando a vida me fez confrontar com os meus próprios sentimentos. Fiz uma certa pesquisa antropológica, mas este é um livro sobre vida e morte, não é um livro sobre outros livros. A única maneira de escrevê-lo foi viajando para dentro de mim mesmo.

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