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17/03/2005 - 09h00

"Don Giovanni" curva-se à anarquia de José Saramago

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SERGIO SALVIA COELHO
Crítico da Folha de S. Paulo

Não é a primeira vez que José Saramago se volta ao teatro. Nas outras vezes, no entanto --"A Noite" (79); "Que Farei com Este Livro?" (80); "A Segunda Vida de Francisco de Assis" (87) e "In Nomine Dei" (93)--, suas peças, com um protagonista esmagado pelas circunstâncias históricas bem definidas, puderam soar algo sentenciosas e graves, um pouco distantes do tom mais lúdico de seus romances, "parábolas portadoras de imaginação, compaixão e ironia", na expressão da Academia Sueca que lhe deu o Nobel em 1998.

O que não impediu que a dura "In Nomine Dei" tenha se transformado em ópera ("Blimunda", 93) pela mão cúmplice do compositor Azio Conghi, que já havia adaptado seu romance "Memorial do Convento" em 1990.

Esta fecunda experiência a quatro mãos da transposição de textos literários em ópera atinge seu ápice com "Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido", que tem previsão de lançamento no Brasil, pela Companhia das Letras, no dia 29 de março. A operação foi inversa: Saramago foi desafiado por Conghi a retomar um tema sempre instigante.

Inspirado pelo libreto da ópera de Mozart, diante da qual o escritor, ateu militante, não se envergonha de se pôr de joelhos, a peça tem o mérito de se adequar mais à fábula saramaguiana, no que ela tem de jocosa e anárquica.

Saramago se arrisca assim a pôr seu nome em uma lista em que constam Tirso de Molina, Molière, Byron e outros. Faz isso em princípio resistente, com medo de "chover no molhado", à espera de uma "boa idéia" que possa contribuir para a prestigiosa posteridade do conquistador espanhol.

Empresa difícil: os elementos da fábula de Don Juan são precisos como peças de xadrez: há o dissoluto e seu criado, a estátua do comendador e as mulheres que o perseguem: a nobre Don'Anna, a burguesa Elvira e a camponesa Zerlina, além dos patéticos traídos Don Otávio e Mazeto. Descobrir algo novo equivale a descobrir uma nova estratégia nesse tabuleiro no qual tantos já jogaram.

A abertura de Saramago retoma o libreto de Da Ponte no ponto em que a ópera mozarteana acaba: o comandante evoca as forças do Inferno que devem tragar o pecador. No incrédulo universo saramaguiano, a maldição é pouco mais que um efeito barato da comédia dell'arte. O Inferno não se abre, e diante do impasse, o comendador passa a ser uma incômoda estátua, a quem Leporello pede para se afastar um pouco, para não atrapalhar a passagem.

Deus ausente, a vingança está por conta das mulheres. A artimanha de Elvira, a "boa idéia", está em atingir Don Giovanni não em seu pecado, mas em seu orgulho, ou seja, no seu catálogo que tanto preza. Elvira assim usa a arma de Raimundo Silva, o revisor que muda a história oficial em "História do Cerco de Lisboa", o temível "deleatur", intervenção quase divina ao alcance dos humildes.

Negado em sua fama, Don Giovanni desmorona. Mas não é usado contra ele a insolência revigorante de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Don Giovanni não é vigorosamente desmistificado: afinal, é o modelo do pecado, e não de virtude, o que sempre o tornou mais simpático aos artistas; é absolvido pela sua mais humilde vítima, Zerlina. Mais belo ainda: é conquistado, tendo reaprendido a ser homem comum.

Mensagem feminista se o quiserem, cheia de bonomia mais do que cinismo, mas que encanta exatamente pela simplicidade. Saramago não foge ao clima de fábula, mas dá conta com eficiente revisão do arquétipo. Como um Deus benévolo, o escritor corrige o conquistador fazendo-o passar não de super-homem a submisso, mas restituindo-lhe a glória pela fragilidade reaprendida, por causa da mulher.

Leia trecho da obra

Comendador
Assim o quiseste, assim o terás. Que as portas da morada do Demónio se abram então para ti, que te abrasem as chamas do castigo eterno, que sofras mil anos de torturas por cada uma das vítimas da tua concupiscência. Vai, maldito, o inferno espera-te, tu já não és deste mundo. Vai!

Don Giovanni
Estás louco varrido.

Comendador
Vai!
(Uma chama alta brota do chão para imediatamente se apagar.)

Don Giovanni
Continuo aqui, comendador. Experimenta outra vez, mas com mais força. Grita para que o Demónio te ouça e mande abrir a porta.

Comendador (gritando)
Vai!
(Levanta-se uma chama mais pequena que a primeira e logo se apaga.)

Don Giovanni
Falhaste, comendador, pelos vistos não tens nenhuma influência no governo do inferno. Talvez seja por estares no paraíso, talvez não haja linhas de comunicação. Dou-te mais uma oportunidade, a última. Costuma-se dizer que às três é de vez.

Comendador (com desespero)
Vai, maldito, vai! Ordeno-te que vás!
(Uma terceira e insignificante labareda sobe e desaparece.)

Don Giovanni
Acabou-se o gás.
(Don Giovanni ri às gargalhadas enquanto o Comendador, lentamente, como se todo o corpo lhe doesse, se vai tornando rígido, imóvel.)

Serviço
"Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido"
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (136 págs.)

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