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24/04/2005 - 10h00

Pesquisadora carioca decifra a censura durante a ditadura

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LUIZ FERNANDO VIANNA
da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro

Leonor Souza Pinto tinha 12 anos quando, em 1970, ajudou os pais a pôr no carro o plástico "ame-o ou deixe-o". Só mais tarde ela foi descobrir o significado desse símbolo da ditadura militar. Nos últimos anos, ela tem se dedicado a decifrar outro símbolo do período: a censura.

A pesquisadora concluiu em 2001, na Universidade de Toulouse (França), a tese "Memória da Ação da Censura sobre o Cinema Brasileiro - 1964/1988", que deve virar livro neste ano. Depois, ampliou o número de filmes analisados: dos 79 da tese para 180.

Todos os processos, incluindo os pareceres dos censores, estarão disponíveis a partir de julho no site www.memoriacinebr.com.br, patrocinado pela Petrobras. É o "Bloco 1", pois a idéia é continuar a divulgar os papéis achados no Arquivo Nacional, em Brasília.

Mas não só divulgar. A originalidade do trabalho da pesquisadora está no seu combate a um lugar-comum: o de que a Censura Federal era integrada por funcionários públicos despreparados, que determinavam cortes em pareceres risíveis de tão ignorantes.

"É preciso mudar esse enfoque. A censura era muito bem estruturada e cumpria uma função estratégica no regime militar. Os censores sabiam bem o que estavam fazendo", afirma Leonor.

Lendo os processos dos filmes, dividiu a ação da censura em três etapas. A primeira, que vai de 1964 a 67, seria a "moralista". "Os censores estavam mais preocupados com palavrões, nudez, questões de comportamento", diz.

"Deus e o Diabo na Terra do Sol", por exemplo, foi proibido para menores de 18 anos, mas não sofreu cortes. Em um parecer de 30 de junho de 1964, o censor não faz qualquer alusão às mensagens políticas do filme.

"A partir de 67, a ótica muda. A censura passa a ser comandada por militares, as justificativas [para os cortes] ficam mais elaboradas e ganham uma base político-ideológica", diz ela sobre a fase que acompanha o período mais repressivo da ditadura, marcado pelo decreto do AI-5.

Leonor cita como exemplo de uma maior sofisticação um documento de julho de 69 sobre "Macunaíma". O censor identifica o símbolo da Aliança para o Progresso --organização voltada para a América Latina criada pelo presidente americano John Kennedy e contestada pelo regime militar-- na roupa de uma personagem e manda apagar a cena.

Sobre "Terra em Transe", a censora Jacira Oliveira faz em abril de 67 um relatório político e destaca uma frase: "A praça é do povo, e o céu é do condor", que aparece em uma faixa e tinha sido entoada por estudantes em uma passeata.

Os censores participavam de cursos, onde viam filmes de cineastas "subversivos" como Godard, Truffaut, Pasolini e Antonioni. O objetivo, é claro, era prepará-los para interpretar mensagens políticas, mas davam a eles alguma formação. Alguns chegaram a estudar cinema na UnB (Universidade de Brasília).

Nesse período mais duro, produções de diretores como Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Cacá Diegues sofrem invariavelmente com a censura, sendo mutiladas ou proibidas. O curioso é que os cortes se restringiam ao território nacional, não impedindo os filmes de ganhar o selo "BQ" (Boa Qualidade), que garantia exibição no exterior.

"Era do interesse da máquina de propaganda do governo que os filmes passassem em outros países, para transmitir uma sensação de normalidade", afirma a pesquisadora. Mas, como fez Arnaldo Jabor com "Toda Nudez Será Castigada" em Berlim, cineastas aproveitavam a participação em festivais internacionais para denunciar as restrições no Brasil.

Com a lenta abertura política iniciada em 1975, a censura mudou de novo.
Filmes que antes seriam esfacelados começaram a ser liberados sem ou com poucos cortes para o cinema. O alvo passou a ser outro: a TV.

"Eles perceberam que o público do cinema era restrito e que o controle precisava ser feito sobre a televisão, que chegava a todos os lugares e a todas as pessoas", diz a pesquisadora. Um caso exemplar, segundo ela, é o de "Pixote", rodado em 80 por Hector Babenco e só liberado para a TV cinco anos depois, com 38 cortes.

Já "Pra Frente Brasil" não conseguiu nem sequer chegar ao cinema. O diretor Roberto Farias mostrou o filme para jornalistas, intelectuais e artistas, uma forma de pressão para que fosse liberado. Mas a censura o segurou até o ano seguinte, já que 1982 era ano de Copa do Mundo e eleições.

"Solange Hernandez era uma chefe de censura inteligente, preparada, perspicaz. Ela dissecou o meu filme, colocando a nu todas as minhas intenções", diz Farias.

"Solange Hernandez era uma chefe de censura inteligente, preparada, perspicaz. Quando fiz contato com ela assumindo uma postura inocente, dizendo que meu filme não tinha nada demais, ela me deu uma aula e o dissecou, colocando a nu todas as minhas intenções", afirma Farias, atestando a tese de que havia censores bem preparados. Como presidente da Embrafilme entre 74 e 79, o cineasta teve de negociar muitas vezes com a Censura.

João Batista de Andrade lembra o bom preparo de outro censor que ganhou notoriedade, Coriolano Fagundes, com quem negociou em 82 a liberação de seu "A Próxima Vítima". "Nunca concordei com essa visão folclórica da censura. Era um departamento que vigiava a sociedade, determinava o que podíamos ou não dizer. Apesar do baixo nível profissional, funcionava", diz ele.

O jornalista Inimá Simões foi o primeiro a fazer um trabalho a partir dos processos de censura: publicou em 1999 o livro "Roteiro da Intolerância". Embora tenha reproduzido muitos pareceres ridículos, ele diz que o trabalho dos censores "não era coisa de idiota". Ou seja, havia organização e alguns profissionais preparados, mas era um trabalho "sujeito a muitas variáveis".

"Havia uma orientação sistêmica, mas que era carnavalizada, não se segurava no varejo. Os censores indicavam alguns cortes por medo, pois se não cortassem nada e seus chefes vissem algo, seriam repreendidos. Quem conhece o funcionalismo público sabe como é", diz Simões. Segundo ele, a leitura dos pareceres mostra como os filmes sofriam restrições por causa de idiossincrasias dos censores.

Para seu livro, o jornalista entrevistou Coriolano Fagundes, que se tornou pastor evangélico. Já Leonor entrevistou um outro censor, que não quis ter seu nome divulgado. "Tentei alguns, que não quiseram falar. Se não querem usar o direito da palavra, nos resta ler os processos para avaliar o trabalho deles", diz ela.

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