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18/09/2005 - 09h12

Sociólogo avalia impacto da TV no país em livro sobre Hebe Camargo

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LAURA MATTOS
da Folha de S.Paulo

Hoje faz 55 anos que Assis Chateubriand quebrou uma garrafa de champanhe numa câmera para comemorar a estréia da televisão no Brasil. A primeira transmissão, em 18 de setembro de 1950, foi um caos batizado de "TV na Taba".

Hebe Camargo, convocada para o show, deu cano. Então com 26 aninhos, preferiu ir se encontrar com um namorado. Mas entrou no ar no segundo dia e está lá até hoje, com as jóias e marcas dos 76 anos. Por que o sofá ainda permanece no ar? Por que dá sinais de perder a força?

Essa é a base de estudo do sociólogo Sérgio Miceli, da USP, que relança "A Noite da Madrinha" (Companhia das Letras), ensaio de 1972 a respeito do sucesso de Hebe e do poder da TV. À Folha, fala de suas teses sobre a loira, Ratinho, monopólio da Globo, celebridades e outros rebentos televisivos.

Folha - Hebe entrou no ar na segunda transmissão de TV, em 50, foi objeto de seu livro, em 72, e tem programa até hoje. O que representa essa perenidade nos 55 anos da televisão brasileira?

Sergio Miceli - A Hebe é uma condensação de muitos atributos que o público valoriza. Tem um estilão interiorano urbanizado, coloquial e "intimista". Usa jóias, mas sem posar de ricaça, sem fazer panca. Inteligente, percebe que tudo está estribado na simplicidade, na dona-de-casa realizada. Possui um conservadorismo moral, ético. Assisti ao programa de debates que ela faz atualmente ["Fora do Ar", com Jorge Kajuru, Adriane Galisteu e Cacá Rosset] e fiquei impressionado com seu conservadorismo. Mas é um conservadorismo interessante, um pouco plástico. Num dos programas, sobre eutanásia, ela foi a única que não acabou a discussão com a mesma opinião com que começara. Ao se ver exposta a casos, repensou e mudou de idéia. Era contrária à eutanásia, mas se tornou mais flexível. Isso é notável do ponto de vista comunicativo, dá verdade à figura.

Folha - O fato de ela ter perdido audiência recentemente significa que o telespectador mudou?

Miceli - Ela enfrenta uma situação de concorrência totalmente diferente e está mais velha. É claro que houve declínio, mas ela está no vídeo há 55 anos. É uma carreira notável para padrões internacionais. Na TV nacional não se conhece talento assim. É uma sobrevivência fenomenal, que corresponde a uma expectativa muito estabilizada. Mas está pegando um fim de festa. O público de classe média ainda existe, mas não com as mesmas características. E a mídia mudou radicalmente, caminhou para uma maior segmentação de público, com uma sociedade mais desenvolvida. A censura acabou, o analfabetismo caiu, os universitários aumentaram.

Folha - Luciana Gimenez e Adriane Galisteu são Hebes da nova era?

Miceli - Elas querem ser a Hebe, mas não sei quem sobreviverá. Todos esses programas atuais sofreram uma espécie de assepsia comunicativa, de limpeza visual, e estão impregnados com uma certa pretensão cultural. A Galisteu tem uma preocupação de correção na fala e expressão que a Hebe nunca teve. A Gimenez é mais próxima, do ponto de vista do desacerto. Produz no espectador a mesma coisa que a Hebe: a oportunidade de se sentir mais competente do que a apresentadora.

Folha - Em entrevista ao seu livro, em 70, um produtor disse que a fórmula de sucesso de programas de auditório era exibir "padre, bicha, desfile de moda e grande esportista". Parece que nada mudou.

Miceli - Você vê que ele sabia das coisas [risos]. Essa seleção mostra que a televisão sempre trabalhou e sempre vai trabalhar com estereotipias. Impõe que só é possível ter um rendimento comunicativo se as estereotipias forem nítidas. Do contrário, dá um "tilt".

Folha - O sr. avalia que a TV sempre mostrava a reconciliação das celebridades com a faceta familiar, o lado "família" do artista. Apesar de o "Faustão" ter um quadro assim, hoje os programas parecem preferir os deslizes, o pagodeiro que bate na mulher, a modelo que trai o namorado. O que mudou?

Miceli - Acredito que não tenha havido mudança. Aparentemente, poderíamos ler assim, que o público está atrás do desvio, da Vera Fischer, de figuras com comportamentos desviantes, drogas, adultério. Mas, por trás disso, há grandes operações de normalização ética. O casamento de Ronaldo e Cicarelli é uma legalização de união. No dia seguinte, ela pode destruir a casa, isso não tem a menor importância. Mas há sempre um resgate, uma tentativa de enquadrar, de disciplinar, de mostrar que a Vera Fischer esteve numa clínica de recuperação, está mais controlada, pode ver o filho. É uma anomia sempre processável, suportável, ou fica complicado, foge à demanda do público.

Folha - Há dez anos, o sr. definiu a Globo como "formuladora-mor da única política cultural de impacto em escala nacional". Isso mudou?

Miceli - Houve uma modernização de cenário do "Jornal Nacional", todo um "glitter", ternos prateados. Mas, do ponto de vista da construção do roteiro de cobertura e opinião, é escandaloso. Existe uma roupagem de franqueza, aqueles jornalistas lá atrás trabalhando, mas o "JN" é quase um órgão oficial do governo. Às vezes eles não conseguem implementar isso até o limite porque querem segurar a peteca de um tal jeito que ela começa a ser jogada por outros de outro jeito. Visto por milhões de pessoas, é uma domesticação ideológica notável.

Folha - É possível falar em evolução se compararmos a TV que editou o debate entre Lula e Collor, episódio que o sr. aborda no livro, e a que cobre a crise política atual?

Miceli - Sim. A Globo continua a ter audiência enorme, mas acabou o monopólio arrasador. O fato de Ana Paula Padrão ter ido para o SBT, de Boris Casoy estar na Record, entre outros exemplos, mostra uma competição impensável anteriormente. E não é uma concorrência momentânea, veio para ficar. A Globo tentará segurar a onda, mas o monopólio está estilhaçado em todos os sentidos, inclusive nas novelas. Isso tem muita importância no Brasil porque a TV alavanca tudo, negócios, política, formação de opinião.

Folha - O sr. descreve o episódio da "macumbeira" que bebeu pinga e fez o auditório entrar "em transe" no Chacrinha e Flávio Cavalcanti, em 1971. Analisou também o sucesso do Ratinho nos anos 90. Como o sensacionalismo persiste, pode-se dizer que é intrínseco à TV?

Miceli - Acho que sim. É um veículo para muita gente, permeável a esse tipo de situação e personagem. Esses programas, como o do Ratinho, dão uma reverberação completamente diferente ao mesmo material de base de todas as mídias. São os mesmos assuntos mostrados de outra forma.

Folha - O sr., então, considera positivo esse tipo de atração na TV?

Miceli - Não sei se a questão é ser positivo. Devemos ser mais atentos à variedade do mundo. A função da mídia é veicular as experiências. Seria outra? Organizar a opinião? Deus me livre. Já tenho isso toda noite às oito horas [no "Jornal Nacional"]. Tem de desorganizar um pouco [risos].

Folha - A atual baixa audiência do Ratinho pode ser só uma fase?

Miceli - Não sei se é só fase. O Ratinho parece não ser tanta novidade, está numa tradição da grosseria na televisão. Mas, com a tendência de segmentação, o veículo tende a ficar mais disciplinado.

Folha - Há 20 anos, o sr. parecia otimista com o fato de a televisão exibir conteúdo nacional em 75% da programação e exportar programas. Mantém esse otimismo?

Miceli - Falei sobre isso num congresso no exterior, para dizer a estrangeiros que a TV brasileira não estaria a reboque só da veiculação de conteúdo importado, que não era um país totalmente dependente culturalmente. Hoje sou otimista com o fato de estarmos rumando para a segmentação, que reflete em maior instrução. Meu otimismo é que a difusão da escolaridade, com mais gente lendo, acessando a net, reduzirá a força e o impacto da TV.

Folha - O sr. diz que o analfabetismo é o alicerce da TV no Brasil. Segundo o governo, o número de analfabetos diminuiu. Apesar disso, a audiência da TV cresceu. Sua avaliação está equivocada ou não devemos confiar no dado oficial?

Miceli - Vamos matizar um pouco. Eu disse que a televisão brasileira é integrada a uma função paraescolar, o que não se daria se houvesse um sistema de ensino mais desenvolvido. O analfabetismo é o alicerce nesse sentido, de uma audiência com essa qualificação. A TV não teria se montado no país da maneira que se montou, com tanto impacto, não fora essa situação. Mas, ainda que não tenhamos mais analfabetismo, vai se ver muita TV. Há uma variável independente do sistema de ensino, a TV tem essa empatia.

Folha - A televisão melhorou ou piorou ao longo desses 55 anos?

Miceli - Melhorou, mas no sentido de que está em uma trajetória que irá colocá-la num lugar mais contido, menos centrado.

Folha - Se estivéssemos aqui em 2060, de que TV falaríamos?

Miceli - Com o avanço da tecnologia, vai ser uma TV programada pelo telespectador. Mas com menor impacto. Nunca mais a televisão vai conseguir modelar o padrão de consumo cultural como o fez ao longo desses 55 anos.
 

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