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25/01/2006
-
10h16
INÊS BOGÉA
Crítica da Folha de S.Paulo
Nesta sexta estréia "Cinzas", peça de Samuel Beckett (1906-1989), com Renée Gumiel e Aury Porto (direção e interpretação), no auditório do Sesc Pinheiros. Segundo Porto, 41, em entrevista à Folha durante ensaio, "essa é uma peça de morte; não uma peça para mortos ou sobre mortos. Não estamos contando como é estar morto, e sim vivenciando esta relação de quem está à beira da morte com que conhece a morte".
Aqui, como em muitos outros textos breves de Beckett para rádio, TV ou teatro, um personagem está de frente para a morte, ouvindo as vozes do escuro de sua alma. "A morte é um tema que nos interessa muito, talvez tenha sido o gancho para a escolha dessa peça", comenta Porto. Para Renée Gumiel, 92, vida e morte se confundem --e isso não tem relação direta com a idade: "Durante toda a vida sempre estive perto da morte, é totalmente habitual. Morte, vida; vida, morte".
A atriz e dançarina se refere especificamente aos momentos difíceis de sua vida, ao lutar três vezes contra o câncer (1969, 1988 e 1990), além de uma quebra do fêmur (1989), que a deixou imóvel por dois meses, correndo o risco de não poder mais dançar. Em todas as vezes, ela se reconstruiu, recuperando uma vida que está intimamente relacionada à arte.
Falar em Gumiel é falar da própria história da dança moderna no Brasil. Quando chegou a São Paulo pela primeira vez, em 1957, não encontrou grande receptividade para seu trabalho inovador. Voltou em 1961, a todo o vapor: dançando, dando aulas em sua própria escola e criando novas coreografias. Aos poucos, foi rompendo preconceitos. Desde então, não parou de influenciar gerações da dança e do teatro brasileiros (veja quadro abaixo).
Sempre ativa, Gumiel participa da peça "Os Sertões", de José Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina. Também no Oficina, dá aulas para os atores; e, no teatro-escola Célia Helena, leciona dança moderna e contemporânea, alongamento bioenergético e improvisações terapêuticas.
Aury Porto e Renée Gumiel se encontraram em 2002, no início da montagem de "Os Sertões". "Ele é o ator com quem mais trabalho no Oficina", diz ela. Para Porto, a passagem de um texto como "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, para as "Cinzas", de Beckett corresponde a "arranjar um amante completamente diferente: nunca vou confundir os dois. Um é superlativo; o outro é sintético. Beckett vai ao ponto e está todo tempo na transitoriedade. Não tem conclusão".
Para Gumiel, de alguma forma quem dirige a peça é o próprio Beckett, pois "está tudo escrito no texto. Pouca maquiagem, poucos movimentos". Um dos pontos ressaltados por Porto na conversa com Gumiel é para que ela faça poucos movimentos, nutrindo-se dos pequenos gestos dos olhos, por exemplo. Movimento e imobilidade são condições muito presentes na dramaturgia de Beckett; o movimento no espaço ganha densidade no tempo das palavras --diálogos e silêncios.
Para Gumiel, é "no corpo que está a essência do personagem, que vem da minha alma". Mas Porto destaca um contraponto: "O personagem fala sem parar, para não ouvir o mar". As imagens fortes do texto vêm também em palavras projetadas na cena. "A palavra invadindo o espaço. Vamos imprimir a palavra no espaço, para entender e ver o texto."
A peça é carregada de fragmentos autobiográficos. Os dois personagens --Ada (Renée Gumiel) e Henry (Aury Porto)-- estão o tempo todo em cena. À beira do mar, um homem conversa consigo mesmo e com seus personagens interiores, pessoas com as quais conviveu e que hoje estão mortas, como seus pais e sua mulher. "O mar e o pai se confundem. O pai desapareceu à beira do mar: ele se suicidou? Ele se afogou? O mar é um personagem da peça, mais do que um som. Provoca sentimentos de sedução e medo -a mesma relação com o pai: não entendo por que ele desapareceu, não entendo o mar", diz Porto.
Os figurinos e o cenário são de Beto Mainieri. É uma peça em preto-e-branco, com uma cor ao fundo que só às vezes transparece. O cenário é também um suporte para a projeção do vídeo de Marília Halla e Oswaldo Sant'ana que pontua a peça inteira com imagens do mar, de cavalos, do fogo, de uma estrela e de uma gota --imagens que dialogam com a luz de Lenise Pinheiro, fotógrafa da Folha. Fundamental na peça é a sonorização de Cacá Machado e Ivan Garro, dando pistas e funcionando também como personagens que não são visíveis (o professor de piano, a filha e outros).
"Quem está ao meu lado hoje?", pergunta o texto logo no início. "Um velho cego meio maluco. Meu pai, renascido de dentre os mortos, para estar ao meu lado. Como se ele não estivesse morto. Não, simplesmente renascido de dentre os mortos, para estar ao meu lado, neste lugar estranho. Será que ele me escuta?"
É o homem por um fio, num espetáculo onde nada do que é humano e nada do que é inumano nos é estranho.
Cinzas
Quando: sex. (estréia, convidados), às 20h; sábado e dias 3, 4, 10, 11, 17, 18, 24 e 25 de fevereiro (sex., às 20h; sáb., às 19h)
Onde: auditório do Sesc Pinheiros (r. Paes Leme, 195, Pinheiros. tel. 0/xx/11/3095-9400 e 0800-118220)
Quanto: de R$ 5 a R$ 10
Especial
Leia o que já foi publicado sobre Renée Gumiel
Renée Gumiel, 92, entrelaça vida e morte em "Cinzas"
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Crítica da Folha de S.Paulo
Nesta sexta estréia "Cinzas", peça de Samuel Beckett (1906-1989), com Renée Gumiel e Aury Porto (direção e interpretação), no auditório do Sesc Pinheiros. Segundo Porto, 41, em entrevista à Folha durante ensaio, "essa é uma peça de morte; não uma peça para mortos ou sobre mortos. Não estamos contando como é estar morto, e sim vivenciando esta relação de quem está à beira da morte com que conhece a morte".
Aqui, como em muitos outros textos breves de Beckett para rádio, TV ou teatro, um personagem está de frente para a morte, ouvindo as vozes do escuro de sua alma. "A morte é um tema que nos interessa muito, talvez tenha sido o gancho para a escolha dessa peça", comenta Porto. Para Renée Gumiel, 92, vida e morte se confundem --e isso não tem relação direta com a idade: "Durante toda a vida sempre estive perto da morte, é totalmente habitual. Morte, vida; vida, morte".
Marlene Bergamo/FI |
Aury Porto e Renée Gumiel |
Falar em Gumiel é falar da própria história da dança moderna no Brasil. Quando chegou a São Paulo pela primeira vez, em 1957, não encontrou grande receptividade para seu trabalho inovador. Voltou em 1961, a todo o vapor: dançando, dando aulas em sua própria escola e criando novas coreografias. Aos poucos, foi rompendo preconceitos. Desde então, não parou de influenciar gerações da dança e do teatro brasileiros (veja quadro abaixo).
Sempre ativa, Gumiel participa da peça "Os Sertões", de José Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina. Também no Oficina, dá aulas para os atores; e, no teatro-escola Célia Helena, leciona dança moderna e contemporânea, alongamento bioenergético e improvisações terapêuticas.
Aury Porto e Renée Gumiel se encontraram em 2002, no início da montagem de "Os Sertões". "Ele é o ator com quem mais trabalho no Oficina", diz ela. Para Porto, a passagem de um texto como "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, para as "Cinzas", de Beckett corresponde a "arranjar um amante completamente diferente: nunca vou confundir os dois. Um é superlativo; o outro é sintético. Beckett vai ao ponto e está todo tempo na transitoriedade. Não tem conclusão".
Para Gumiel, de alguma forma quem dirige a peça é o próprio Beckett, pois "está tudo escrito no texto. Pouca maquiagem, poucos movimentos". Um dos pontos ressaltados por Porto na conversa com Gumiel é para que ela faça poucos movimentos, nutrindo-se dos pequenos gestos dos olhos, por exemplo. Movimento e imobilidade são condições muito presentes na dramaturgia de Beckett; o movimento no espaço ganha densidade no tempo das palavras --diálogos e silêncios.
Para Gumiel, é "no corpo que está a essência do personagem, que vem da minha alma". Mas Porto destaca um contraponto: "O personagem fala sem parar, para não ouvir o mar". As imagens fortes do texto vêm também em palavras projetadas na cena. "A palavra invadindo o espaço. Vamos imprimir a palavra no espaço, para entender e ver o texto."
A peça é carregada de fragmentos autobiográficos. Os dois personagens --Ada (Renée Gumiel) e Henry (Aury Porto)-- estão o tempo todo em cena. À beira do mar, um homem conversa consigo mesmo e com seus personagens interiores, pessoas com as quais conviveu e que hoje estão mortas, como seus pais e sua mulher. "O mar e o pai se confundem. O pai desapareceu à beira do mar: ele se suicidou? Ele se afogou? O mar é um personagem da peça, mais do que um som. Provoca sentimentos de sedução e medo -a mesma relação com o pai: não entendo por que ele desapareceu, não entendo o mar", diz Porto.
Os figurinos e o cenário são de Beto Mainieri. É uma peça em preto-e-branco, com uma cor ao fundo que só às vezes transparece. O cenário é também um suporte para a projeção do vídeo de Marília Halla e Oswaldo Sant'ana que pontua a peça inteira com imagens do mar, de cavalos, do fogo, de uma estrela e de uma gota --imagens que dialogam com a luz de Lenise Pinheiro, fotógrafa da Folha. Fundamental na peça é a sonorização de Cacá Machado e Ivan Garro, dando pistas e funcionando também como personagens que não são visíveis (o professor de piano, a filha e outros).
"Quem está ao meu lado hoje?", pergunta o texto logo no início. "Um velho cego meio maluco. Meu pai, renascido de dentre os mortos, para estar ao meu lado. Como se ele não estivesse morto. Não, simplesmente renascido de dentre os mortos, para estar ao meu lado, neste lugar estranho. Será que ele me escuta?"
É o homem por um fio, num espetáculo onde nada do que é humano e nada do que é inumano nos é estranho.
Cinzas
Quando: sex. (estréia, convidados), às 20h; sábado e dias 3, 4, 10, 11, 17, 18, 24 e 25 de fevereiro (sex., às 20h; sáb., às 19h)
Onde: auditório do Sesc Pinheiros (r. Paes Leme, 195, Pinheiros. tel. 0/xx/11/3095-9400 e 0800-118220)
Quanto: de R$ 5 a R$ 10
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