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18/03/2006 - 02h00

Leia trecho do livro "Subúrbio"

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da Folha de S. Paulo

Leia abaixo trecho de "Subúrbio", de Fernando Bonassi, lançamento da ed. Objetiva. A edição impressa da Folha traz hoje resenha sobre o livro.




Primeira Parte

"As outras coisas podem ser ilusões dos olhos ou do desejo, feitas para cegar uns e saciar o apetite dos outros, mas é com a dor que foram construídos os mundos." ("De Profundis", Oscar Wilde)

1 - Primeiras informações. Primeiras impressões do tempo dessa história, antes e depois. Paisagem vista a olho nu:

A placa menor --"Emérito Cientista Italiano"-- já se perdeu, ficando só mesmo a mancha correspondente. A maior, quase morta de ferrugem, está pendurada por um parafuso mal espetado na parede. Até hoje ela range. Ferrugem. A água das chuvas foi espalhando a calda da ferrugem. É o que mais chama atenção na esquina. O vigor das sombras escorridas. O bolor impresso no cimento. Fóssil.

Pra ler a informação nessa placa maior é preciso entortar a cabeça, como se estivesse desconfiado: Lombroso.

A rua Lombroso se encontra numa sucessão de morros baixos mas íngremes, na continuação da serra do Mar. Tem por um lado a Vila Prudente e o largo de Vila Zelina, com a igreja, o hospício e os lituanos. Tem pelo outro a margem esquerda do Tamanduateí, lá embaixo, na divisa com São Caetano do Sul, onde as tarifas de ônibus sofrem um acréscimo de trinta por cento e a fumaça da Mannesman turva tudo. Saindo de um muro rendado de cacos de vidro junto da rua Baía Grande, desce ondulando em degraus arredondados, cruzando as ruas das Dálias, Paramú, Orlando e Savigni, terminando na Vicente Giacaglini em frente ao mercadinho, na esquina da padaria. Esse conjunto de ruas é tão inclinado na direção do rio que não foram poucas as vezes em que mesmo os ônibus particulares, recolhendo os operários de madrugada, refugaram o trajeto, deixando torneiros e fresadores a pé. Em cada esquina, na calçada e rente à guia, foram espetados tufos de trilhos de trem, visando proteger as casas dos caminhões desgovernados e sem freio que se precipitam pelas travessas.

Mas nem sempre esses pára-choques funcionam... Em 73, por exemplo, uma família inteira foi morta pelas costas quando assistia à televisão. O pequeno F 4000 de um feirante não foi pequeno para atravessar trilhos, muros e paredes, entrando pela sala e arrastando todos por baixo dele até derrubar a laje. Houve também o dia em que tombou a carreta de maçãs, a carga rolando pelas sarjetas, semeando vários morros abaixo, proporcionando o milagre dos sucos e vitaminas por mais de duas semanas.

Num lugar envergado como aquele, onde as latas de óleo ficam vazando embaixo das pias, esses fatos não chegam a ser surpreendentes, embora o velho e a velha recordassem cada um deles, inclusive somando detalhes e opiniões, imaginando como aquilo se dava. Isso na época em que eles ainda conversavam; o que, no tempo dessa história, já fazia mais ou menos 18 anos, não acontecia.

2 -

Agora a fachada é vagamente lilás e marrom. Ainda. Essas cores, a velha exigiu em 67. Num dia em que o velho só comentou:

- A merda de uma casa de polaco.

Quarto, sala, cozinha e banheiro.

Quando a velha não quis mais ser a mulher do velho, fez sua cama de armar e colocou no corredor. Definitivamente. Com isso a passagem pela porta da frente foi inutilizada. Pra entrar na casa na época dessa história era necessário dar a volta. Cruzar numa diagonal o jardim abandonado. Vencer as samambaias nativas que ocupavam o passeio de uma maneira selvagem, com tufos duros e espetantes, molhando, manchando e furando as roupas. Depois se percorriam os 15 metros de extensão do terreno no sentido do fundo. A passarela de cimento rachado dançando na lama que se acumulava por baixo, margeando a valeta. O musgo poderia derrubar um estranho. A imobiliária já tinha reclamado desse estado de coisas, mas o velho e a velha não iam fazer qualquer melhoria até que acertassem o novo aluguel. Como há mais de seis anos o dinheiro vinha sendo depositado em juízo, aquela era uma queda-de-braço sem fim, prejudicando a conservação da casa.

Ao desembocar no terraço do fundo, entre o tanque coberto com uma telha de amianto e a entrada do porão, duas portas: a da cozinha e a do banheiro.

No banheiro separado do resto da casa, o chuveiro, a privada sem tampa e as prateleiras. Duas das paredes tinham prateleiras até o teto. Cobertas com cortinas de cambraia florida, plissadas em cabos de vassouras, essas prateleiras guardavam, por exemplo, todos os sapatos já comprados pelos velhos. Também vários chinelos de dedo tortos e amarelecidos; coleções de cadarços, almanaques e revistas; vidros de maionese Helmman's hermeticamente fechados pela ferrugem, mas cheios de porcas, parafusos e pregos; cadernetas pagas da padaria; ferramentas (incluindo uma pequena bigorna niquelada e um martelo de borracha); sacos de estopa; sacos de carvão; pedaços de fio; lâmpadas fluorescentes e reatores de partida; latas de óleo de câmbio; o rotor de um motor de máquina de costura; plugues e tomadas; binóculos, rádios e despertadores quebrados. Isso sem contar com a parte que funcionava como despensa, com latarias, sabão em pó, em pedra, detergentes e esponjas do mato. Coisas...

Saindo do banheiro, três passos e a porta da cozinha está à direita.

Uma cozinha turva. Décadas de frituras recobriram cada centímetro do lugar com uma camada impermeável e grudenta de vapor de gordura. O armário de lata branco e preto da massa plástica, esperando uma pintura que nunca veio; o fecho improvisado com arame, sendo forçado por dentro pelas panelas em atropelo. Era ali que a velha começava a jornada do café-da-manhã de todos os dias, derrubando a leiteira num estrondo. No tempo dessa história acordava o velho com esse despertador. A mesa, onde a fórmica brilhante ficava vestida de toalha plástica com elástico na bainha. O jogo de temperos em cima, bem no centro: palitos triangulares, pimenta, óleo, vinagre, sal. Tudo sobre um prato trincado de pirex. Três cadeiras sobreviveram aos anos e não derrubariam mais ninguém até desaparecerem da face da terra. A pia de pedra era tão gasta que tinha envergado nas pontas, como um caderno usado. A geladeira GE. O fogão de ferro fundido. O guarda-comida guardando a comida - e bacias de plástico e escorredor de macarrão e espremedor de batata e tábua de carne e toalhas de mesa e guardanapos e panos de prato e flanelas. Alguns lenços também. Por engano. A lâmpada pendendo nua do teto por um fio de cor indizível. Verde? Marrom? Preto? Branco? Encardido. Teias de aranha envoltas nele e barbantes e fiapos e novelos de palhinha de aço em suspensão que foram ancorando. Como um tempo antes tinha acontecido um problema com a manilha que atravessava a cozinha de fora a fora, a cerâmica do chão foi quebrada. Do conserto adiado resultou uma passarela de vermelhão. A tentativa de diminuir a falta do piso destruído...

Indo por essa passarela, entra-se na sala.

Na sala assistiram à televisão Vozzo, ouviram discos no Grundig, cochilaram a digestão no sofá, pernoitaram visitas tardias, tiraram o sapato ao chegar de longe, trocaram-se as crianças alheias, riram de nervoso, choraram de fininho, receberam notícias, contaram salários, fizeram tantas outras muitas coisas, mas quem entrasse ali não ia notar. A sala, no tempo dessa história, era o lugar mais vazio da casa. Um sofá, duas poltronas e o tapete soltando pêlo. Fora isso, só o quadro. O quadro de vidro com a foto do casal. O velho tinha posto na sala há muito tempo, já como um desaforo à mulher. Os dois sabiam que o seu lugar certo era o quarto. A velha pareceu engolir aquilo. Depois pareceu esquecer. Ele também. Um quadro retocado. Um quadro que dava mesmo um pouco de medo. A quantidade de tinta usada no retoque dos olhos.

Saindo da sala, um corredor.

No corredor só a cama da velha. O corredor estava tão atulhado por esse móvel que a estante (com a coleção de santos de gesso, a bíblia e o relógio digital) teve que ser parafusada na parede, à meia altura. Desde que tinha mudado pra lá a velha chamava esse lugar de "meu quarto"...
O quarto ficava à esquerda.

O quarto tinha ficado pro velho. Depois. A luz desse quarto, abafada num globo leitoso, se acendia por um fio que vinha de um furo num canto do teto, cruzava e escorria pela parede oposta. Terminava numa "pêra", na cabeceira da cama. No quarto, a cama do velho ocupava o centro de tudo.

Agora a cama do velho. Depois. A marca dupla dos corpos resistindo à ausência da mulher. A cômoda e o guarda-roupa guardando as roupas dos dois. Não tinham mexido nisso. Desde sempre.
A casa, só.

3 -

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4 -

O buraco na parede, o velho fez com uma chave de fenda. Uma chave de fenda número 12. Demorou mais de vinte dias. Pra não despertar suspeita o velho só podia fazer o serviço em certos horários e de certas maneiras: enquanto deixava o chuveiro ligado num banho que não tomava, lavando só a cabeça como um disfarce ou então quando simulava uma dor de barriga, podendo se trancar por muito tempo, com uma boa desculpa. Não foi fácil. Por duas vezes o furo não chegou aonde ele queria. Na primeira foi um cano de cobre que surgiu no meio da sua escavação. Teve uma felicidade. Antes. Depois um pressentimento. Um gelado nos braços. Pensou que aquele cano no seu caminho era um sinal. Um sinal de que talvez estivesse avançando demais dentro daquela curiosidade. O velho chegou mesmo a parar por uns dias. Um aperto medroso. Uma taquicardia só de pensar. Parou quatro dias. Então recomeçou com raiva. Recomeçou com uma raiva de satisfazer o seu desejo que foi assim como um preso injustiçado cavocando a muralha da delegacia. E isso era tanto, tanto, que dessa segunda vez, mesmo tendo chegado ao outro lado, ao que parecia ser o forro de Eucatex nas costas de um armário, mesmo com essa segunda tentativa dando nisso, o velho não desistiu. E foi numa quinta-feira, quando o velho ligou o chuveiro e fez os barulhos do banho como numa novela de rádio, foi nessa quinta, sem nem tirar a roupa encardida com seu suor ácido, que ele tornou a pegar a chave de fenda e rodar naquele túnel já bem fundo. Foi nesse dia que ele conseguiu chegar ao outro lado numa boa posição. Pela terceira vez. Nessa, uma luz que surgiu do outro lado. Olhou na hora. Antes que o velho pudesse pensar qualquer coisa, aquela perspectiva fez com que ele esquecesse todos os sinais ruins que vinha colecionando naqueles dias. Quando olhou viu muito bem a cortina do boxe; viu também a privada com a tampa estofada e o desentupidor de borracha negra, ao lado dela. O lavatório ele não viu inteiro, mas também estava ali, do lado direito. Ele tinha certeza. Só de ver aquela louça sanitária do outro lado, só de imaginar a vizinha sentada ali naquela privada, ou deslizando um sabonete na penugem do ventre, ou lavando as mãos num tricô de espuma ou ainda passando a maquiagem só pra ele... Só de pensar nisso o velho ficou tão animado que quando atravessou a frente do espelho, as rugas do seu rosto lhe pareceram menos profundas. Então entrou na água quente do chuveiro e deixou que ela escorresse por cima do seu corpo, com roupa e tudo, numa transgressão só dele.

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6 -

No tempo dessa história. No começo. Isso era comum:

Na terceira dose. Na hora em que o velho pousou o copo no balcão. Justamente nessa hora foi que ele ouviu o som distante e abafado. No momento em que o fundo de vidro maciço do copo bateu contra o balcão, contra o alumínio. A vibração... A vibração que se seguiu foi sendo comunicada de um material pro outro: do alumínio pra madeira que lhe dava forma, aos tijolos que os sustentavam e depois pro chão, pra terra fervilhante. Da terra essa espécie de terremoto concentrado subiu pelo cascalho, pelo cimento e pelas lajotas até as pernas do velho, fechando o seu circuito. Ele mal teve tempo de notar tudo isso. Mal teve tempo de notar porque logo surgiu o primeiro rato rastejando e espumando ao longo da valeta seca. Em seguida grupos de três ou quatro deles foram sendo cuspidos das calhas. Choviam! Depois, as ratazanas. Uma dúzia delas! As ratazanas também entraram na padaria. Gordas. Grávidas. Os pêlos duros. Brilhantes. O velho saltou por cima delas. Não pôde evitar que o seu pé esmagasse uma. A massa de pele, ossos e a gosma branca ficou grudada no seu sapato. Esperneou. A sujeira desapareceu. Correu com forças que não tinha. Nuvens de insetos ondulantes enegreceram os céus numa tempestade de flocos. Teve que correr ainda mais depressa, porque a calçada se abria num mar vermelho e das junções do cimento saltavam tufos de plantas que envolviam as coisas num abraço frio. O velho começou a flutuar. Pela sorte de poder flutuar nesse pesadelo de desgraças iniciou uma prece sentida, que dizia:

- "Ó amante Jesus, manso Cordeiro de Deus, apesar de ser eu uma criatura miserável e pecadora, vos adoro e venero a chaga causada pelo peso de vossa cruz que dilacerando vossas carnes desnudou os ossos de vossos ombros sagrados e da qual vossa Mãe dolorosa tanto se compadeceu. Também eu, ó altíssimo Jesus, me compadeço de Vós e do fundo do meu coração vos louvo, vos glorifico, vos agradeço por esta chaga dolorosa de vosso ombro em que quiseste carregar a vossa cruz por minha salvação. Ah!, pelos sofrimentos que padecestes e que aumentaram o enorme peso dessa cruz, vos rogo com muita humanidade, tende piedade de mim, pobre criatura pecadora, perdoai os meus pecados e conduzi-me ao céu, pelo caminho da cruz."

Telhas voavam dos telhados e arrancavam a cabeça das pessoas que ainda não haviam morrido pelo desmoronamento de barrancos ou pela queda de fios de alta-tensão tão comuns naquele momento. Ele ouviu vozes e se encaminhou pra elas e elas estavam atrás de roupas empoeiradas pela siderúrgica e também havia cortinas cerradas penduradas no ar em plena rua como lençóis carimbados de hospital levitando em torno de um arame invisível e quando ele chegou ali só via as vozes. O velho cutucava os lençóis na busca de bocas que correspondessem a essas vozes na hora em que foi surpreendido pelas espinhas. Elas estouravam seu rosto e o transformavam numa carne viva. Primeiro uma leve coceirinha, mas que depois se transformava num comichão e esse numa coceira insuportável e por algum motivo que ele já não lembrava ele não podia se coçar. Do meio da doença o velho pensou que talvez não pudesse se coçar porque quem sabe as feridas se espalhassem! Mas logo notava que aquilo se espalhava ainda que ele não fizesse absolutamente nada, então pousou a mão e depois esfregou selvagemente e então, desesperado, desesperado porque sabia o que ia acontecer, ele começou a gritar. Gritava que ia se transformar numa caveira:

- Caveira... Numa caveira... Ó meu Deus... Meu Jesus... Meu Jesuizinho, meu Pai, meu Papaizinho do Céu-Céu-Céu...

Foi nesse momento que, surgindo de um escuro, o rosto bom apareceu diante dele. O velho não soube quem era, mas sabia que já o tinha visto. Já o tinha visto? Ele falava:

- Levo o senhor pra casa...

O velho começou a chorar porque a sua memória era fraca. Não saber o nome ou qualquer coisa sobre aquele rosto bom lhe pareceu a pior das falhas. Teve dores por todo o corpo quando foi erguido e arrastado. Em casa encontrou a velha de ombros caídos e pôde ver que estava com a máscara da sua raiva bem esticada no rosto. O velho tentou explicar, mas antes que pudesse ela se aproximou. Olhou o seu rosto de perto. Perto como uma oculista, torcendo a boca e o papo murchos. Depois virou pro homem do rosto bom, disse:

- Traz ele aqui na pia.

Com a concha das mãos, ásperas, a velha lavou o seu rosto. Talvez existisse sangue na água, mas o velho também achava que podia ser barro. Teve certeza que ela enxugou o seu rosto daquele jeito nervoso pra que ele sofresse mais e mais de tudo. Depois ela o empurrou pro quarto. Na hora em que se deitou ele ainda pôde ouvir a mulher estragar de uma vez o encontro dele com o homem do rosto bom:

- Desculpa.

Pediu desculpa mais de uma vez e arrematou:

- É só um velho bêbado.

No quarto, ele balbuciou:

- Porra...

E a negou três vezes antes de desabar num sono.

7 -
"Eu preciso consertar esse dente, que me deixa feia, preto assim. É junto da gengiva mas dá pra ver... Só que no dia seguinte eu sempre esqueço. No dia seguinte eu sempre esqueço de encontrar um cachorro pra ficar alisando enquanto o dia passa, mesmo depois de ter passado o dia inteiro assim: 'puxa, um cachorro era bom por aqui, pra sentir o pêlo na palma da mão, o calor, um bicho.' Costurar a alça de um sutiã. O que é isso? Nada. Mas vai lembrar... Eu não lembro. Passar um giz na ponta do sapato branco, só na ponta, que é um sapato bom e que tá todo comido no bico, coitadinho. Nem isso. Fundo de panela. Quanta panela boa encostada, com o fundo furado, esperando o homem que vem aí na pior hora. Só esse parafusinho, só esse aqui, já cheguei a falar com o homem do Foto América e ele disse: 'vem aqui que eu deixo esses óculos novinhos pra senhora num instante"; pelo jeito que ele fala, ia ser de graça, mas nem assim. Esse vidro tá rachado desde 72. Tem o vidro. Tem a massa... Lustra Móveis me dá dor de cabeça; negócio é um pouquinho de vinagre na flanela. Essa unha estragada é desse taco, a ponta espetada daquele jeito, de tanto chute já pulou fora, agora é só o buraco mesmo, bom pra torcer o pé! Essa dentadura é quebrada. Tô falando! Na chapa de cima. Eu nunca me acostumei com esse Modess. Caro. Um paninho, dobrado em dois. Às vezes eu espirro, ou dou risada, e faço xixi na calça, agora eu uso o paninho pra isso. É bom também. Aqui se faz aqui se paga. Um saco de terra era o que bastava pra acabar com essa musgada subindo no muro. Eu sempre perco chinelo. Filho não calhou. No Guia da Cidade tem muita rua com o mesmo nome, não tem não? O tanque perdeu a lisura, agora a malha tem que deixar de molho. Não pode encerar a cerâmica: escorrega. Diz que um mineiro pediu pra ser crucificado lá na terra dele. Febre! Eu vou te contar que eu gosto de uma febre. Muita não, que muita eu vomito, mas só aquela febre que deita a gente, deixa a gente mole vendo o vulto das coisas. Parece que o governo não pagou o preço que eles pediram, vieram aí, deram um quilo de cebola por cabeça. Muito jornal junta barata. Rato sai é dali ó. Despejo, Deus me livre. Eu uso a bacia de alumínio. Aí põe um copo de água, um de farinha, bate um ovo e mistura também. Aí põe um pouco de açúcar, outro pouco de sal e outro ainda de fermento. Tem que ficar grosso, mas não grudento. Pega com uma colher, a quantidade de uma colher mesmo, mais ou menos cheia, aí empurra com o dedo pra cima da gordura. Tem que pôr bem de perto pra não espirrar, certo. Depois passa no açúcar e na canela. Tem gente que chama de bolinho de chuva, eu chamo de bolinho de água mesmo. O bibelô era uma caixinha de jóia de porcelana, em formato de chapéu, com lacinho e tudo, por causa disso... Três tiros. Não tem ponto sem dó. Terra não suja. O que suja é a calçada, todo mundo gospe e o cimento não chupa aquilo, não é verdade? Fica ali, seca e voa. A casa tá sim, trincada em muitos lugares, o velho... Bom, era uma coisa que ia indo, mas agora parou.

Quanta novena jogada fora! Se não é a ponte pra enroscar, a enchente levava. Isso tudo é bobagem..."

8 -
O velho. 37 anos de casa. Assim:

... descer a rua - esperar - subir no ônibus Mercedes Benz - dormir - acordar - descer do ônibus Mercedes Benz - entrar pela portaria 3 - picar o cartão - subir para o vestiário - número 56 amarelinho - abrir o armário de lata verde/cinza - despir-se da roupa recém-posta em casa - caminhe com cuidado - não corra - CIPA - vestir o macacão azul de peça única - duro de suor seco graxa óleo cavaco poeira - descer para a linha de produção - atravessar a fábrica - ferramentaria - prensas - fundição - caldeiras - carrinhos de mão - empilhadeiras - fresas - ajustagem - lima limanha - tambores de óleo verde/cinza - setor 8C - árvore de comando de válvula - o torno - uma foto de Nossa Senhora Aparecida - rodar rodar rodar macio macio no seu carro ônibus caminhão trator e demais veículos automotores - atravessar a fábrica - tambores de óleo verde/cinza - limanha lima - ajustagem - fresas - empilhadeiras - carrinhos de mão - caldeiras - fundição - prensas - ferramentaria - subir para o vestiário - número 56 amarelinho - abrir o armário de lata verde/cinza - despir-se do macacão de peça única - duro de suor úmido graxa óleo cavaco poeira - CIPA - não corra - caminhe com cuidado - banho - Lux entre dez estrelas - toalha - seca de suor duro graxa óleo cavaco poeira - Avanço Avanço limão - vestir a roupa de casa - vapor suor seco graxa óleo cavaco poeira - descer para portaria 3 - picar o cartão - sair pela portaria 3 - subir no ônibus Mercedes Benz - dormir - ser acordado - descer do ônibus Mercedes Benz - subir a rua... descer a rua - esperar - subir no ônibus Mercedes Benz - dormir - acordar - descer do ônibus Mercedes Benz - entrar pela portaria 3 - picar o cartão - subir para o vestiário - número 56 amarelinho - abrir o armário de lata verde/cinza - despir-se da roupa recém-posta em casa - caminhe com cuidado - não corra - CIPA - vestir o macacão azul de peça única - duro de suor seco graxa óleo cavaco poeira - descer para a linha de produção - atravessar a fábrica - ferramentaria - prensas - fundição - caldeiras - carrinhos de mão - empilhadeiras - fresas - ajustagem - lima limanha - tambores de óleo verde/cinza - setor 8C - caixas de câmbio - árvore de comando de válvula - uma foto de Nossa Senhora Aparecida - rodar rodar rodar macio macio no seu carro ônibus caminhão trator e demais veículos automotores - atravessar a fábrica - tambores de óleo verde/cinza - limanha lima - ajustagem - fresas - empilhadeiras - carrinhos de mão - caldeiras - fundição - prensas - ferramentaria - subir para o vestiário - número 56 amarelinho - abrir o armário de lata verde/cinza - despir-se do macacão de peça única - duro de suor úmido graxa óleo cavaco poeira - CIPA - não corra - caminhe com cuidado - banho - Lux entre dez estrelas - toalha - seca de suor duro graxa óleo cavaco poeira - Avanço Avanço limão - vestir a roupa de casa - vapor suor seco graxa óleo cavaco poeira - descer para portaria 3 - picar o cartão - sair pela portaria 3 - subir no ônibus Mercedes Benz - dormir - ser acordado - descer do ônibus Mercedes Benz - subir a rua...
Se aposentou com 37 anos de casa. O velho.

9 -
Na madrugada de um domingo de Ramos foi que a velha decidiu não ser a mulher do velho por nem mais uma noite sequer. Levantou sem um peso que carregava todo dia. Uma obrigação que tinha esquecido mas à qual se mantinha fiel. Fez café. Bebeu um copo americano bem cheio, como se fosse pra tomar coragem. A boca ela limpou encostando os lábios levemente num pano de prato branco. Deixou uma marca de sudário. Ficou lá. Em pé. Um sentimento de não ter nada por dentro. Os seus olhos no amanhecer que vinha por trás do vitrô. Isso. Isso a ocupava inteira. Nem os barulhos de feira cada vez maiores, acompanhando o amarelar do dia.

Nem. Nada mudou o que se passava com ela, que era assim como uma determinação cansada. Invencível. Na hora em que aquele transe paralítico se esgotou ela foi pro quarto, pegou uma roupa boa e a vestiu no corredor, por trás da porta, fora da linha de visão do velho. Quando já estava pronta pra missa foi que ele despertou. A velha olhou bem praquele homem amassado de sono. Ali, na hora da sua fala, a convicção que teve vinha também com um pouco de raiva. Uma raiva triste, pacífica:
- Agora eu não sou mais a tua mulher.

O velho ficou lembrando um pouco e disse:

- E daí?

A velha teve que ser mais específica:

- Eu não durmo mais com você.

E o velho, quase sem graça:

- Ah! Então é isso.

E baixou a cabeça, como se fizesse uma ginástica. A velha foi sair. Parou. No tempo que passou o silêncio tomou uma forma visível entre os dois. A velha não sabia se aquilo era um desaforo, repetiu:

- É isso.

Difícil saber se o velho estava provocando quando falou:

- Você não é mais a minha mulher faz muito tempo.

A velha achou que não merecia aquilo bem naquele dia santo e antes de ter comungado, mas é provável que existissem outros motivos. O fato é que ela falou:

- Você já não era homem quando eu ainda era mulher.

E o velho, que não tinha acordado muito bem, nem olhou nos olhos da velha pra dizer, com aquele gosto de elástico com o qual acordava depois de beber muito:

- Você nunca foi mulher de ninguém.

A velha saiu de costas. Assim, sem saber, ela estava dando o seu último olhar de frente naquele velho. Muitos anos ainda iam se passar desse dia pro tempo dessa história, mas isso já era assim. A velha desapareceu. O velho levantou e tomou um copo de café no mesmo copo da velha, recém-lavado no escorredor de louça. Não tinha pão, mas também não tinha fome que o incomodasse. Esperou uma coisa que não veio. Saiu pra feira. Nesse dia, quando voltou já perto do almoço foi que viu a cama de campanha que a velha armou, ocupando todo o corredor e fechando pra sempre a entrada de visitas da casa. O velho, que até então não estava levando aquilo a sério e já tinha mesmo esquecido a conversa da mulher, vendo aquilo, perguntou o que qualquer um perguntaria num caso desses:

- Que é isso?

E ela respondeu uma coisa que ele estava vendo e portanto não dizia nada que ele não soubesse:

- Uma cama.

E ele:

- De onde veio?

Ela respondeu mastigando as palavras:

- Comprei com o meu dinheiro.

Na hora, como um espinho engasgado, o que veio na boca do velho foi o seguinte:

- Todo o dinheiro que entra aqui é meu.

Mas ela também estava esperando uma facada. O que veio voltou:

- Eu mereço uma parte.

E virou de costas antes de arrematar:

- ... Pelo que te agüentei.

Dessa maneira tinham encerrado aquele assunto que não era mesmo a felicidade pra nenhum dos dois.
 

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