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04/11/2000 - 09h59

"Fio Terra" - Poeta extrai riqueza da recusa

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MARCELO COELHO
do Conselho Editorial da Folha e colunista da Folha Online

"A primeira palavra é não", diz Armando Freitas Filho num dos poemas deste "Fio Terra". "Não de não posso. Não de não./ Contando os negros grãos/ até encontrar, para cortá-los/ os elos mais duros que estalam/ os nexos, as moelas que juntam/ e digerem, osso e cartilagem."

Há, de fato, uma espécie de recusa, de gesto seco, de tom escuro na obra deste poeta avesso a doçuras, molezas e seduções. Poderíamos pensar em João Cabral de Melo Neto, homenageado em algumas páginas deste livro.

Mas a "dureza" de João Cabral tende para o analítico, para o meditativo, e parece resultar de um longo embate com o objeto que o poeta escolheu para contemplar: um canavial, um ovo de galinha, um quadro de Mondrian.

Já o embate de Armando Freitas Filho é consigo mesmo. O rigor cabralino se transforma aqui em violência, e a consideração do mundo exterior é substituída pela inquirição da própria intimidade; não, contudo, como quem faz confidências, mas como quem se entranhasse em si mesmo, sondando as vísceras. O poema "sai sem se passar a limpo/ cheio de suor, cheio de cabelo". E, diz o poeta, "às vezes escreve-se a cavalo./ Arremetendo, com toda carga./ (...) Atropelando tudo."

Não se pense, entretanto, que haja aqui algum tipo de culto à espontaneidade, ao coloquial, ao tom muitas vezes frouxo que caracteriza a poesia surgida por volta dos anos 70. Armando Freitas Filho estreou em 1963, no movimento práxis, situando-se cronologicamente entre os poetas do Concretismo e a geração da poesia marginal; "Fio Terra" dá continuidade a uma obra já extensa, onde o empenho construtivo e o devassar da intimidade se combinam.

Combinam-se sem qualquer conciliação ou ecletismo estilístico; combinam-se sob a forma da angústia. O que há de íntimo, de biográfico nos poemas de Armando Freitas Filho nunca se deixa revelar por inteiro; referências à morte da mãe, ao suicídio da poeta Ana Cristina César, a um telefonema ou a uma experiência erótica aparecem em textos nem sempre fáceis de decifrar. Mas não se trata de decifrá-los; estão ali exatamente para não serem decifrados; o "assunto" de cada poema, com efeito, é a dificuldade da confidência, a "recusa", o "não" de que falávamos no início.

"Nada se explica nunca", diz o poeta em "Deposição": "tudo é parte da mesma pedra/ amordaçada por sua camisa-de-força/ natural, e que cai -cada vez mais- / no poço até o fundo, que não é falso/ mas o que se sente, permanente/ é a queda, não o primeiro chão/ da cama ou o do próprio corpo/ ou depois o último, final, de terra."

"Fio Terra" está dividido em duas partes; a primeira, que dá nome ao volume, tem a forma de um diário, datado de abril a julho de 1998. A segunda, intitulada "No Ar", reúne 27 poemas.

Logo nas primeiras entradas desse "diário" podemos notar, em imagens que se repetem ao longo do livro, o jogo torturado entre rigor e intimidade, entre o cérebro e as entranhas. De um lado, há a menção constante à linha reta, aos trilhos de um trem, ao papel pautado, ao traço exato. De outro, há o emaranhado das veias, o "pulso pegajoso", o "estilo viscoso, em língua/ de cobra", o "resumo/ brusco que a alma faz do corpo:/ mancha, borrão -sem corte/ de espírito e perfil apurado/ em negro nítido sobre o papel".

O próprio título, "Fio Terra", remete a duas idéias complementares: a do circuito que se enrola, que faz curvas, desvios e nós, e a de uma conexão perpendicular ao solo, que vai ao fundo, como um poço. Falando de si mesmo, o poeta ressalta sua identidade sem desvios, "itinerário/ frio, destituído de surpresa/ solavanco e serpente". A vida corre numa rua de mão única, ou prossegue numa imobilidade de árvore. Mas está sempre ameaçada -seja pela perspectiva do destino final, seja pela intervenção do ambiente -há ventanias, chuvas, agressões do espaço aberto em quase todas as páginas do livro.

Parece ser também este o contraste entre a forma disciplinada dos versos e a inquietação do ritmo, onde cada frase é cortada pelos "enjambements" ou vem, sem verbo, aos acessos: "Chão de cerâmica vermelho escaldante:/ losangos, placas, ladrilhos hidráulicos./ O terraço desiste de ser, sequer/ no risco ávido, espaço de trégua..."

Desse mundo hostil, onde mesmo o amor parece ser sobretudo ato físico, combate, "bote", "estirão", o poeta se retira, e como que se concentra; o poema surge como testemunho de uma clausura, de um bater-se contra as palavras como contra um muro; de uma solidão: "o dia incurável/ e único me cerca e delineia/ até o limite último e justo".

Se essa poesia não se entrega facilmente, se resulta de um ato de defesa, de reclusão, nem por isso se torna menos inacessível. O que há de fascinante nos poemas de Armando Freitas Filho nada tem a ver com a efusividade lírica, mas sim com a irrupção surpreendente das imagens, que funcionariam quase como as faíscas de um fio desencapado. O poeta libera suas metáforas, no paradoxo de um impulso sob controle.

São as "árvores/ de braços abertos para a poda", ou a "flor parada entre as folhas do dia aberto"; um movimento de distensão é sugerido na bela imagem do mar "emendando seu lençol ininterrupto", ou da flecha "insuportável/ desferida sob céu de alívio". É com flores que termina o livro; uma flor que o poeta compara a uma "ininterrupta lâmpada/ gastando-se", para todavia comentar, no poema seguinte, que o livro se encerra "sem as soluções da paisagem/ sem água nem terra, sem céu/ e sem sol(...)".

O extraordinário em "Fio Terra" talvez seja exatamente isso: que, de tantas recusas, resulte tanta riqueza; e que tudo o que há de secreto nesse livro, de organização oculta e de sofrimento contido, se ponha, a cada verso, num estado como que de eclosão, de súbito encontro com o leitor -que, antes mesmo de se dar conta disso, é capturado por essa forte poesia.

Fio Terra - 4 estrelas
Autor: Armando Freitas Filho
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 17 (96 págs.)

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