Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
03/05/2006 - 04h00

Crítica: As Virações de Orfeu no Municipal

Publicidade

ARTHUR NESTROVSKI
Articulista da Folha de S.Paulo

Por que ele se vira? A um passo de sair dos Infernos, resgatando Eurídice, por que se vira Orfeu? Essa é a pergunta central da ópera --não só da ópera "Orfeu" de Monteverdi (1567-1643), mas, no limite, de todas as óperas, desde a estréia desse primeiro marco do repertório, em 1607. A pergunta ressoa na cidade pela terceira vez num curto espaço de tempo: depois das montagens da Banda Sinfônica e de um grupo de alunos da USP, é a vez do Municipal, numa produção dirigida por João Malatian e regida por Mara Campos.

"Orfeo" é uma "fábula em música", como diz o libreto. Em termos de século 17, isso define um laço com a tradição dos "intermedi", entretenimentos teatrais. Musicalmente, combina traços do madrigal com canto monódico no estilo caracteristicamente dramático e minuciosamente prosódico do compositor, além de passagens instrumentais de vários tipos e música de dança. As misturas se harmonizam num contexto de alegoria, em que tudo aponta para a dimensão moral.

A mesma idéia de mistura e, ao mesmo tempo, de distanciamento alegórico parece organizar tudo nessa nova produção. A começar pelos cenários (de Naum Alves de Souza), combinando escadarias de "mármore", descendo do palco pelo meio dos músicos e sugerindo uma corte renascentista, com as gigantescas hieráticas cabeças "gregas" (acenando para as tendências mitológicas classicistas da época), num espaço de fundo "cool" moderno (Atos 1 e 2). E a continuar pelos elegantes figurinos (de Naum e Miko Hashimoto), um tanto inexplicavelmente transpostos para fins do século 19, com modestos toques tropicalistas (homens de saias e chapéus floridos, sem falar no carnavalesco Orfeu, único destaque multicolorido).

As coisas melhoram quando pioram; quer dizer: no Inferno, que aqui é a zona da escuridão, não do fogo. É mais a "selva obscura" de Dante do que o Hades de Ovídio, mas o próprio libreto autoriza a viagem. Nas profundezas, como na luz, passeiam ninfas e faunos, em artificiais amassos, que compõem boa parte da coreografia explicitamente ingênua de Jorge Garcia.

Pequenos deslizes à parte, do ponto de vista musical-instrumental essa é uma das melhores coisas que o Municipal já fez. A diminuta orquestra de câmara acolhe um baixo-contínuo formado por cravo ou organeto e viola da gamba, liderados pelo excelente chitarrone de Ibaney Chasin --autor, diga-se de passagem, de um livro sobre os afetos musicais barrocos: "O Canto dos Afetos" (Perspectiva, 2004). Chasin também toca guitarra barroca, atuando como um animado "spalla", inclusive para os cantores solistas.

O tenor carioca Luciano Botelho encarna Orfeo com fluência e segurança, mesmo nesse ambiente em que tudo está teatralmente tão descarnado. A parte musical é mais virtuosística do que pode parecer, seja pelas frase ornamentadas, sejas pelos cromatismos, seja pelo registro, mais grave do que comum para um tenor. As estrelas musicais são Botelho e o sempre brilhante Coral Paulistano, que comemora 70 anos (desde sua fundação por iniciativa do diretor do Departamento de Cultura, Mário de Andrade).

Pena que tudo seja mesmo tão desinspirado ao redor. Entra ano e sai ano e as coisas não mudam, dramaturgicamente, na ópera paulistana, com raras exceções. Segue o mesmo idioma engessado escolar, como se esta não fosse também a cidade de Zé Celso, Antunes Filho e Antônio Araújo, para ficar só nesses três. Nem Te-ato, nem Teatrão, a ópera parece se contentar com o teatrinho.

É uma grande pena, hajam vistos o empenho e o cuidado do trabalho, e as virtudes musicais comandadas pela regente titular do Coral Paulistano, Mara Campos. Por que Orfeu se vira? A resposta é um segredo, se não o segredo da música, e sua revelação. Mas fica difícil de ouvir ali, entre os constrangimentos alegóricos e reais entre os quais Orfeo precisa mesmo se virar.

Orfeu
Quando: hoje e sex., às 20h30; e dom., às 17h
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nº, tel. 3222-8698)
Quanto: de R$ 20 a R$ 40
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página