Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
12/06/2006 - 02h08

Entrevista com Julio Bressane

Publicidade

Entrevista com Julio Bressane

NAIEF HADDAD
da Folha de S.Paulo, em Lagos (Portugal)

Em 1966, Júlio Bressane estreou na direção com o curta "Lima Barreto - Trajetória". Neste ano, uma das figuras mais originais da história do cinema brasileiro chega, portanto, às quatro décadas de carreira. E 60 anos de vida. E volta agora a um escritor, carioca assim como Lima Barreto.

São de Machado de Assis, como Bressane adianta à Folha, os contos nos quais se baseia para seu próximo longa. Na entrevista a seguir, o autor de 26 filmes defende um cinema "que transpassa todas as disciplinas, todas as artes, todas as ciências e também a vida" e comenta sua versão de "Cleópatra", que deve ficar pronta ainda em 2006. Além disso, ataca a crítica e diz que o cinema brasileiro é formado por "uma grande manada que se sintoniza" a partir de "três, quatro pessoas".

Bressane foi um dos homenageados da segunda edição do Cineport, festival dedicado a obras realizadas em língua portuguesa, na cidade de Lagos, em Portugal. Encerrado ontem, o evento teve como grande vencedor entre os longas o brasileiro "Cinema, Aspirinas e Urubus", que conquistou seis prêmios, entre eles, melhor filme e direção (Marcelo Gomes).

Com o maior número de indicações (nove), o longa português "Alice", de Marco Martins, foi contemplado em apenas três categorias: montagem, fotografia e música. Leia a seguir:

Folha - Como foi seu primeiro contato com o cinema?

Julio Bressane - Quanto tinha 11 anos, fui para os EUA e ganhei uma câmera e um projetor 16 mm. E comecei fazer filmes, era um brinquedo pra mim, diferente de outros. Um brinquedo do qual curiosamente não controlava o resultado. Não parei desde então. Comecei como assistente de direção em filmes como "Menino de Engenho" (65), de Walter Lima Jr, e "Viagem ao Fim do Mundo" (68), de Fernando Campos. Dirigi o curta-metragem "Lima Barreto - Trajetória" (66) e, em seguida, fiz um longa com o Eduardo Escorel, "Bethânia Bem de Perto" (66).

Folha - Algum arrependimento ao longo desses 40 anos de carreira?

Bressane - Com esse estado de espírito, fica-se distante da criação. Embora hoje seja muito analisada, a criação é uma questão misteriosa. Mas de fato há alguns sinais visíveis dentro dela, e um deles é a paixão. Com essa perspectiva, procura-se livrar do ressentimento, da culpa, do arrependimento.

Folha - Sobre o futuro, algum projeto mais ambicioso?

Bressane - Todo projeto tem uma certa ambição e uma certa obscuridade, e é isso que vai levá-lo a fazer. Você faz porque não sabe o que é. Agora vou começar a mixar "Cleópatra", que é minha versão para a língua portuguesa do mito. Deve ficar pronto até o fim do ano. Mas já preparo outro projeto.

Folha - Qual é?

Bressane - Chama-se "A Erva do Rato". É uma "sugestão" que me foi feita pelo Machado de Assis. São uma página de um conto e mais meia página de outro. Em função dessa página e meia, fiz essa ficção. Começo a dar os primeiros passos para realizar o filme no primeiro semestre do ano que vem.

Folha - Quais são os contos?

Bressane - Meia página de "Um Esqueleto" e uma página de "A Causa Secreta".

Folha - Em "Filme de Amor" (03), o senhor trabalhou o seu ator-fetiche, Fernando Eiras, e com atrizes pouco conhecidas. Em "Cleópatra", o elenco inclui Alessandra Negrini, Miguel Falabella e outros atores famosos. Como se dá a escolha dos atores?

Bressane - Quando escrevo, já penso bastante no ator; mesmo que precise mudar de última hora. Às vezes coincide de chamá-lo e dar certo, às vezes não. Tenho sempre um grande prazer em acompanhar o trabalho de atores, cenógrafos, diretores de arte, fotógrafos, figurinistas. Faço filmes de improviso, portanto a observação e o prazer com o trabalho alheio me fortalecem muito e fortalecem a todos da equipe.

Folha - O sr. pensou na Alessandra Negrini desde o início como Cleópatra?

Bressane - Neste caso, não pensei em uma atriz, inventei uma personagem, porque é uma nova versão, lírica. Cleópatra é um mito que vem sendo apropriado pelo latim desde o primeiro século, pela língua francesa desde o século 14. Apesar da citação em "Os Lusíadas", de Camões, o mito teve pouca ressonância na língua portuguesa. Tive então vontade de fazer uma versão apropriando-se da memória da língua portuguesa. A força da língua portuguesa, dizem os lexicólogos, está na lírica. As línguas não são sinônimas, uma língua é uma maneira de sentir o mundo. Cleópatra foi muito associada, sobretudo na língua inglesa, a sua versão épica. Eu pensei em uma versão musical, trágica. lírica. Sem ler o roteiro, a Alessandra me disse que gostaria de fazer o filme. Considero-a uma atriz esplêndida, cuidadosa. Fez um trabalho muito difícil.

Folha - O senhor acaba de citar Camões. Para fazer "Filme de Amor", estudou o mito das Três Graças na literatura e na pintura. Neste festival Cineport, filmes seus como "Brás Cubas" e "Sermões" nasceram da literatura. O cinema depende de outras manifestações artísticas?

Bressane - O cinema pode ser concebido de muitas maneiras. Talvez esteja vivo até hoje por essa razão: não conseguiram triunfar apesar do esforço gigantesco para a adoção de uma fórmula única. O cinema, como sinto, é aquele que se coloca em movimento, que transpassa todas as disciplinas, todas as artes, todas as ciências e também a vida. É um movimento que atravessa tudo isso. Não é a síntese de todas as artes, o que é uma visão primária. Agora, é nessa travessia que o cinema se faz; abrindo-se para outras disciplinas é que se rasga o clichê. A idéia de que a variedade dos filmes está na variedade dos temas, que um só cinema pode ser produzido, é o fim do cinema. É o totalitarismo tomando conta da democracia.

Folha - Incomoda-se em ser um diretor premiado em festivais, bem recebido pela crítica e de público reduzido?

Bressane - Essa é uma questão totalmente artificial, um julgamento absurdo.

Folha - Por que absurdo?

Bressane - Não sou diretor de público reduzido, não sou bem recebido em festivais, não costumo ser bem recebido pela crítica.

Folha - "Filme de Amor" ganhou diversos prêmios.

Bressane - Prêmios aqui e ali. Não quer dizer que foi bem recebido pela crítica, e sim pelo júri. Os filmes foram bem recebidos pelo que puderam ser exibidos, não pela crítica, que, pelo contrário, não tem nem gosto, nem compreensão, nem tempo para compreender. São funcionários de jornal, que tem uma dedicação a um determinado espaço que precisa preencher de acordo com o que é possível colocar. Faço um cinema que pede outro gosto, outro ritmo, outro repertório. Não há nenhuma dessas coisas. E considero o resultado dos meus filmes prodigioso no sentido do público. Em função do meu cinema e da minha luta, fiquei fora do que se chamou de mercado, indústria. O cinema brasileiro é controlado por três, quatro pessoas. Uma grande manada se sintoniza a partir delas.

Folha - E quem são elas?

Bressane - Não vou citar nomes. Como tudo no Brasil, todas as coisas são interligadas. Esse horror da política é apenas um sintoma do que acontece em todos os segmentos. O cinema não é diferente. Ao contrário, essas coisas estão agudizadas no cinema, que é um instrumento que lamentavelmente produz muito menos do que pode. É como se tivesse um escafandro para entrar dentro da banheira, um desperdício. Agora, fiquei fora do cinema brasileiro por essa vontade _eu diria maldade_ primitiva, por essa vingança bruta. Mesmo assim, alguns filmes meus > poderiam ter sido exibidos e criado impacto com o público: "A Família do Barulho" (70) foi um estouro cinematográfico, mas ficou apenas 15 dias em cartaz, foi tirado pela polícia; os filmes da Belair [produtora fundada em parceria com Rogério Sganzerla em 70] teriam sido um sucesso se tivessem sido lançados. Não foram por impedimento da censura. Meus filmes _aqueles que foram exibidos_ são lançados em um cinema, com uma única cópia, mas que ficam cerca de 9, 10, 11 semanas. Considero um prodígio. A pessoa entra anonimamente, não há um centímetro de divulgação e, mesmo assim, o filme consegue se manter. E são filmes de custo pequeno _um terço, um quarto, um quinto em relação à média. Se imaginar filmes que saem entre R$ 5 milhões e R$ 8 milhões, é um desatino comparar os meus com esses, sobretudo do ponto de vista econômico. Mesmo que nem eu vá ver, já significa no mínimo sete, oito vezes menos prejuízo _ou seja, lucro_ do que os outros.

Folha - Qual o custo de "Cleópatra"?

Bressane - Por volta de R$ 1, 5 milhão.

Folha - Voltando à questão da crítica, sua avaliação é que ela não está preparada para seus filmes?

Bressane - Não, a crítica não está preparada ela mesma, para ser crítica. Para isso, é preciso se equipar. Crítica é algo difícil. Com esse repertório, com essa escrita, com esse grau de reflexão, não é possível ser crítica. Mas não acho isso importante. Relevante é a crítica na própria linguagem, o cinema precisa ser ele próprio objeto de crítica. Tudo isso está dentro do horizonte da construção da imagem, que é o que mais nos faz falta, o conhecimento da própria imagem. O cinema sofre hoje de uma ausência de observação da imagem, os filmes estão reduzidos a enredos: o sujeito sai de casa, usa roupa assim e assado, trai o marido, volta e depois se mata. O que é único e precioso _a construção das sombras no fotograma_ está fora de questão. Há uma dificuldade que é o fato dessa literatura que pensa a imagem ser quase desconhecida em língua portuguesa.

Folha - Em uma entrevista à Folha, o senhor afirmou que Sganzerla (1946-2004) fazia um "cinema popular sofisticado" e depois dele ninguém mais consegui fazer. Por quê?

Bressane - Não saberia responder. Hoje a indústria não consegue fazer nem o popular nem o sofisticado. É um estrabismo. Rogério transitava com facilidade por esses compartimentos do teatro da cultura. Criou algo que deveria ter sido seguido ardentemente no Brasil, sobretudo pela indústria, mas não foi.

Folha - Como avalia o cinema brasileiro hoje?

Bressane - Vejo tudo sempre melhor do que ontem e tudo pior do que ontem. Lembro o Rogério, que recolocou em seu filme "O Signo do Caos" (05) _assim como Orson Welles havia feito em "A Marca da Maldade" (58)_ uma leitura do movimento do cinema. O cinema como um movimento tirânico, visto como um conluio de gângsteres, burocratas, políticos, jornalistas, que produzem o homem nulo, corrupto, parasita de um guichê, que acaba se afundando no esgoto. Mas não poderia me aventurar a julgar a imagem do que está sendo feito hoje, seria uma temeridade julgar uma memória inconsciente de uma coisa que não se vê direito, que é o seu próprio tempo. Não tenho condições de dizer o que acho do cinema brasileiro.

Folha - Quais os cineastas que te inspiram?

Bressane - Tenho até um certo temor citá-los pela importância que têm para mim e isso pode ser passado de maneira tão banalizada. Mas sempre me interessei muito pelo cinema mudo. Fora disso, John Ford, Godard. Sou influenciado por tudo, o que é, aliás, uma das minhas fraquezas. Tenho que tomar bastante cuidado, preciso ser bastante exigente comigo porque sou facilmente influenciado, enxergo facilmente beleza nas coisas.

O jornalista Naief Haddad viajou a convite do festival Cineport

Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Julio Bressane
  •  

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página