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16/06/2006 - 02h00

Diretor da Ancine fala de subsídios para o cinema brasileiro

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SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo

Homem de raciocínios complexos, sem prejuízo da clareza, o diretor da Agência Nacional do Cinema, Gustavo Dahl, 67, resume numa sentença o aparentemente inextricável xis da questão do cinema brasileiro.

"Introduzir um produto inteiramente subsidiado num mercado altamente competitivo é uma incongruência econômica", afirma Dahl.

O subsídio que atinge a quase totalidade dos filmes brasileiros é dado pelas leis de renúncia fiscal, com as quais empresas destinam parte do Imposto de Renda a seus escolhidos. Ou seja, uma espécie de cortesia privada com chapéu público, que gerou para a produção de cinema US$ 500 milhões nos últimos dez anos, segundo cálculos da Ancine.

O governo Lula encaminhou neste mês ao Congresso, com pedido de votação urgente, projeto que prorroga e amplia a Lei do Audiovisual.

"Mesmo com a grande participação das estatais nos mecanismos fiscais, essa continua sendo uma política de empresa, não de governo", diz Dahl, que avalia outros pontos do projeto na entrevista a seguir.

Folha - O sr. afirmou, em 2003, que o cinema brasileiro avançava em vôo cego, porque não havia, nas leis existentes, nenhuma preocupação com resultados. Nesta semana, o governo Lula encaminhou ao Congresso proposta de prorrogação dessas leis. É a institucionalização do vôo cego?

Gustavo Dahl - A grande limitação da Lei do Audiovisual é que a produção não está articulada com a distribuição. Se os projetos fossem pré-avaliados por empresas de distribuição, haveria um primeiro filtro. Isso não é feito. A Lei do Audiovisual favorece o franco-atirador. A seleção mesma [dos filmes] vai ser feita pelo mercado ou pelas oportunidades de exposições em festivais e mostras que os filmes encontram.

Mas o cinema brasileiro e os outros cinemas nacionais não sobrevivem sem a sustentação do Estado. Por isso a prorrogação da lei é indispensável e deixa margem para aperfeiçoamentos que estão em curso. Não acho que implique forçosamente na institucionalização do vôo cego. O que se propõe é que a sustentação do Estado interaja com a ação no mercado.

Folha - De 33 filmes brasileiros lançados neste ano, 29 registram menos de 100 mil espectadores. É conseqüente dar incentivo fiscal para produções com esse resultado?

Dahl - Filmes são protótipos. Protótipos não têm resultado garantido. É da natureza do cinema ser uma atividade de alto risco. Mas há aqui um aspecto interessante. O mercado de salas brasileiro é um gargalo. Ele tem poucas salas e está organizado em função da exploração do filme comercial.

Ao mesmo tempo, os mecanismos de incentivos fiscais privilegiam a produção autoral. Portanto, você está fazendo um produto autoral para explorá-lo num mercado construído em função da exploração de um produto comercial. Seria preciso criar um novo anel do mercado destinado ao público do filme autoral.

A crítica ao modelo de produção teria de ser porque ele coloca um produto num mercado que não é adequado a ele. E o Brasil ainda é privilegiado, porque tem aproximadamente 10% das salas voltadas para o cinema de arte. Essas salas também são produto de incentivo fiscal. Mas, para fazer a equivalência desses resultados teria de haver um mercado dessas salas proporcional à produção, o que não acontece.

Folha - Num país que possui 1.900 salas de cinema para 180 milhões de habitantes, quando o governo faz um projeto que aumenta a injeção de dinheiro no anel da produção, ele não acentua o desequilíbrio na cadeia industrial?

Dahl - O projeto de lei introduz alguns dados novos. Você está se referindo exclusivamente à Lei do Audiovisual. O projeto cria um fundo, a partir dos recursos gerados pela própria indústria, que permitirá investimentos mais direcionados. Ou seja, já é um mecanismo de contrapeso do mecanismo da Lei do Audiovisual, que é inteiramente direcionado por uma ótica individualizada.

Mesmo com a grande participação da Petrobras e outras estatais nos mecanismos fiscais, continua sendo uma política de empresa, e não uma política de governo. O fundo estabelece essa possibilidade de desempenhar essa política de governo, para produção, distribuição, exibição e infra-estrutura. Começamos a construir o que os americanos chamam de uma política de check and balance.

A questão é muito simples. Digo isso tanto que já virou um bordão. É difícil introduzir um produto inteiramente subsidiado num mercado altamente competitivo. Mas essa questão não se resolve com uma penada. Nem com um decreto. Nem com um projeto de lei.

Isso se resolve com um projeto estratégico de nação, um projeto estratégico de audiovisual, que inclua um projeto estratégico cinematográfico. Este projeto sintetiza os avanços propostos por este governo. No governo passado se criou a Ancine. Há um efeito cumulativo, mas o prédio se constrói de andar em andar.

Folha - É também um bordão do senhor perguntar se 'a televisão é uma concessão do Estado ou é o Estado uma concessão da TV'. É correto oferecer às emissoras de TV incentivo fiscal para produzir produtos audiovisuais?

Dahl - A televisão brasileira tem um modelo extremamente concentrado. Não se pode falar 'na' televisão brasileira, mas 'nas televisões' brasileiras. Essa concentração se dá em função da concentração do faturamento. Criar mecanismos que permitam, ainda que de maneira proporcional ao envio de lucros, a produção tem méritos. É a co-produção com a televisão. A produção tem que ser feita por produtora independente, a quem os recursos serão repassados. É uma indução da co-produção da televisão com a produção independente e uma ampliação das possibilidades de produção das televisões.

Folha - Na prática, isso não vai permitir que a TV Globo faça seus produtos em associação com o produtor Daniel Filho, que desempenha também o papel de diretor artístico da Globo Filmes?

Dahl - A legislação não pode deixar de ser feita em função de eventuais e hipotéticas distorções. Quando elas aparecerem, podem e devem ser corrigidas. Gostaria de lembrar que, há alguns anos, o Daniel Filho saiu da Globo e fez produções independentes, como 'Confissões de Adolescente'. Fez minisséries que tiveram dificuldades de colocação na televisão.

O grande problema da televisão brasileira é a limitação que as emissoras têm para veicular a produção externa independente, a que não realizam domesticamente. Acho que esse mecanismo pode ajudar a modificar essa situação.

Folha - Que chance o sr. vê de o projeto ser aprovado pelo Congresso Nacional exatamente como está?

Dahl - O Congresso é uma caixinha de surpresas.

Folha - Pode surpreender mesmo na votação de um projeto que tem o apoio de dois lobbies importantes, como o da TV e o dos cineastas?

Dahl - [O cineasta] Cacá [Diegues] diz que o cinema brasileiro, desde os tempos do cinema novo [anos 60] era muito modesto. Tinha só a pretensão de contribuir para a evolução da humanidade. Nesta linha de modéstia, eu diria que nós no cinema brasileiro o consideramos suprapartidário e transgovernamental. Encaminhar o projeto de lei ao Congresso é a maneira correta de permitir a participação da sociedade. É neste momento que os vários agentes econômicos poderão dar a sua contribuição.

Alterações são do jogo democrático. O secretário [do Audiovisual do Ministério da Cultura] Orlando Senna diz que esse é um pacote de bondades. Não vejo muito onde pode haver setores de oposição ao projeto. A capacidade de tramitação no Congresso vai ser a prova de fogo da sua adequação política.

Folha - No governo da polêmica do dirigismo cultural, é tabu falar em avaliação de mérito dos projetos?

Dahl - Depende do critério. Nós estamos criando um mecanismo de avaliação que é objetivo. Sou dirigente de uma agência que implementa políticos. A questão do dirigismo cultural ficou completamente superada. É preciso estar atento tanto aos radicalismos de esquerda quanto às provocações de direita.

A questão do dirigismo cultural foi utilizada para turvar as águas. Uma política cinematográfica se dá com a pactuação de Estado. É muito simples: apoio automático, a partir de resultados de mercado e apoio seletivo a partir dos méritos do próprio projeto. Isso não significa dirigismo. É o modelo habitual que utilizam os cinemas nacionais para movimentar sua produção.

Folha - A Ancine inaugurou neste mês novo sistema de controle dos dados de bilheteria no Brasil, que é baseado em informações oferecidas pelos exibidores, contrariamente à prática hoje em vigor no mercado, de considerar os dados fornecidos pelos distribuidores. Há dúvida quanto à precisão dos dados fornecidos pelos distribuidores?

Dahl - Não. É uma questão técnica. Os mecanismos de normatização têm que se dar a partir de fontes primárias. O dado oferecido pela distribuição é uma fonte secundária. A fonte primária é a bilheteria do cinema. É uma questão, digamos, de adequação legal.

De qualquer maneira, o cruzamento dos dados fornecidos pelos exibidores com aqueles fornecidos pelos distribuidores para o mercado agrega consistência. Então, não é uma questão de dúvida, é de adequação legal e da possibilidade de cruzamento desses dados.

Folha - Em artigo recente, o sr. escreveu: '[O presidente] Itamar Franco [1992-95] é beijado na boca por Norma Bengell e enfia goela adentro do Ministério da Fazenda a Lei do Audiovisual'. Na nova Lei do Audiovisual, o que convenceu a Receita Federal a autorizar mais benefícios fiscais, inclusive para a TV aberta?

Dahl - Desde o beijo da Norma Bengell no Itamar se passaram dez anos. Mudou a importância dada ao audiovisual pela evolução tecnológica e pela evolução dos hábitos sociais de consumo. Hoje, o audiovisual inclui a telefonia e a internet. A questão se tornou muito mais complexa.

Não é impossível que você baixe um longa-metragem num chip de telefone celular, plugue-o numa tela de plasma e possa ver de maneira imediata a produção mundial. Hoje em dia o conteúdo audiovisual tem autonomia em relação ao próprio suporte. A situação mudou, se ampliou. Eu diria que a visão da Receita Federal se tornou mais atualizada, complexa e generosa.

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