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09/07/2006 - 04h00

João Moreira Salles quer filmar fim do mandato de Lula

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SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo

O documentarista João Moreira Salles, que registrou em "Entreatos" (2004)os trinta últimos dias da campanha que elegeu Luiz Inácio Lula da Silva presidente da República, gostaria de ter Lula novamente diante de sua câmera.

"Minha idéia seria passar os dez últimos dias de poder com ele", diz o cineasta, em entrevista sobre "Primárias" (1960), documentário do norte-americano Robert Drew cuja edição em DVD sai agora no Brasil, pelo selo Videofilmes (de Salles).

Drew usou pela primeira vez na história do cinema um equipamento portátil capaz de gravar imagem e som simultaneamente. Com ele, seguiu os passos dos candidatos J.F. Kennedy e Hubert Humphrey atrás dos eleitores do Wisconsin.

Distantes no tempo, "Primárias" e "Entreatos" são parentes próximos no cinema documentário. Descubra por que na entrevista a seguir.

Folha - Robert Drew conta, na faixa comentada de "Primárias", como propôs a Kennedy, antes de sua posse, filmar "um presidente num momento de crise, colocado contra a parede, tendo de tomar decisões difíceis". Trata-se da raiz do documentário "Crise", que a Videofilmes lança nesta semana no Brasil. O sr. propôs o mesmo a Lula da Silva?

João Moreira Salles - Não. Terminei de filmar no dia seguinte à vitória e só voltei a falar com Lula no dia da exibição de "Entreatos" no Festival de Brasília, dois anos depois. Gostaria de filmá-lo mais uma vez, mas não agora. Minha idéia seria passar os dez últimos dias de poder com ele. Assim, teríamos os trinta dias que antecederam o poder, e os dez últimos. Poderia ser interessante.

Folha - Está em negociações com Lula para filmar o fim de seu mandato? Que chances vê de isso ocorrer?

Salles - Por enquanto é apenas uma idéia. Não conversei com ninguém a respeito dela.

Folha - É fato que, originalmente, "Entreatos" pretendia filmar as duas campanhas simultaneamente, tal qual "Primárias" faz? Por que esse plano foi abandonado e que tipo de diálogo "Entreatos" passou a estabelecer com seu "par", "Peões", de Eduardo Coutinho?

Salles - A idéia original era muito difícil de ser realizada. Logisticamente, não teríamos como acompanhar dois candidatos que se locomovem pelo Brasil em aviões particulares, passando às vezes por quatro Estados no mesmo dia. Seria caro demais. Além disso, é difícil pensar que conseguiríamos acesso ao coração de uma campanha, se esta sabe que temos uma segunda equipe no coração da campanha adversária. Finalmente, "Entreatos" é cinema no qual me sinto à vontade. Seria muito difícil imaginar o Coutinho fazendo cinema igual. Daí, surgiu "Peões".
A complementaridade dos dois filmes é grande. No meu, temos o maior
protagonista das lutas sindicais das décadas de 70 e 80, mas não temos a cultura operária que o explica. Em "Peões", não temos Lula, mas conhecemos o mundo sem o qual ele não existiria.

Folha - Para o espectador de "Primárias" e "Entreatos" parece haver uma afinidade entre as cenas da sessão de fotos de Kennedy e as da gravação do programa eleitoral de Lula. O sr. enxerga aí algum parentesco?

Salles - Campanhas acabam se parecendo, mesmo quando separadas por mais de quatro décadas. Por conseguinte, qualquer filme sobre processos eleitorais acaba por ter seqüências que se assemelham. Mas como "Primárias" exerceu uma grande influência na minha formação de documentarista, é um filme que conheço praticamente de cor, é bem possível que "Primárias" e "Entreatos" sejam primos em primeiro grau.

Folha - Concorda que "Primárias" tornou-se um filme de personagem, protagonizado por J.F. Kennedy, a despeito da distância que o diretor
buscou manter dos candidatos nas filmagens e da divisão isonômica de tempo entre ambos na montagem?


Salles - O cinema direto retoma a idéia original de [Robert J.] Flaherty [1884-1951], ou seja, a de um cinema não ficcional baseado em personagens. Nesses casos, vencerá sempre aquele personagem que tiver presença de câmera. Kennedy tem carisma, Humphrey não. Drew exigiu que o tempo de tela dos dois fosse o mesmo. Mas aritmética é uma coisa, presença é outra. Mesmo se Humphrey ocupasse mais da metade do
filme, ainda assim Kennedy seria o personagem marcante. Isso independe até das simpatias ideológicas dos diretores. O personagem carismático se impõe, sempre.

Folha - Drew diz que a experiência de seguir os candidatos mudou suas opiniões anteriores sobre eles. É uma demonstração da impossibilidade de observar sem interferir e sofrer interferência do que se observa?

Salles - Sim. Sobre essa questão da imparcialidade da câmera no cinema direto há muita confusão. Na origem do movimento, alguns pioneiros chegaram a defender essa tese. Drew defendeu-a; de certa forma, [o diretor Albert] Maysles [um dos fotógrafos de "Primárias"] a defende até hoje. Outros, como [o fotógrafo de "Primárias" D.A.] Pennebaker, sempre disseram que isso era uma bobagem. Hoje, acredito que a verdade está no meio do caminho. Quando se filma alguém durante tanto tempo, o tempo todo, a consciência da câmera oscila. Ora é percebida e interfere na ação, ora não.

O essencial é que os momentos de inconsciência não são intrinsecamente
melhores do que aqueles em que o personagem sabe que está sendo filmado. Jean Rouch [1917-2004] demonstrou que a encenação é sincera. Acredito
nisso e portanto não me importo em saber quando algo está sendo dito explicitamente para a câmera.

Folha - É possível falar em espontaneidade numa situação por definição encenada, como uma campanha política? Alguém que esteja sendo filmado é capaz de perder a consciência da câmera?

Salles - Em certos momentos, sim, em outros, não. Nem eu controlo isso, nem o personagem filmado. Há sempre essa oscilação. É como a consciência do ronco de um ar condicionado. Ele está sempre lá. Às vezes nos damos conta dele, outra vezes não. Do ponto de vista do valor do material, não acredito que a encenação seja inferior à espontaneidade.
A bem da verdade, a espontaneidade para mim é um conceito sem muito uso. O que seria ser espontâneo? Em situação social, não estamos sempre
encenando? É difícil definir a espontaneidade. E é verdade que todo candidato, por definição, é um personagem, independentemente de estar ou não sendo filmado.

Folha - No texto introdutório a "Primárias" o sr. menciona que Drew não fez um filme perfeito. Quais são as imperfeições de "Primárias" e qual é seu maior mérito?

Salles - O mérito é a ousadia. Jogar fora tudo que se fazia no documentário há pelo menos trinta anos. Abandonar trilha, entrevistas, tripés, quase toda narração. Inventar um equipamento revolucionário, o grupo sincrônico leve, capaz de acompanhar a ação e não mais ditá-la. Ter a paciência de esperar oito anos até tudo ficar pronto. É um dos momentos mais originais da história do documentário. As imperfeições são conseqüência desse pioneirismo. Como é o primeiro filme do gênero, nem tudo está nos eixos. Eles ainda não conseguem se livrar inteiramente da narração. A câmera se aproxima dos personagens, mas não a ponto de sabermos de fato quem são, o que pensam. O cinema direto será um cinema não mais da descrição, mas da experiência: você, espectador, sentindo-se na ação; "Primárias" chega perto disso, mas não alcança inteiramente o objetivo.

Folha - Acredita que "Jogo de Cena", o próximo filme de Eduardo Coutinho, possa inaugurar um dispositivo no gênero documental, ao inverter sua mão habitual, promovendo a ida do documentado até o documentarista, enquanto este permanece fixo num palco?

Salles - Coutinho não gosta que se fale dos seus filmes antes que fiquem prontos. Vou respeitar. Digo apenas que a novidade de "Jogo de Cena" não me parece ser propriamente esta, mas o fato de o filme se propor a embaralhar os conceitos de espontaneidade e encenação.

Folha - Drew demonstra reverência às imagens de seu próprio filme, na
faixa comentada. Concorda que a relevância histórica de "Primárias" ultrapassa até seus méritos de inaugurar o cinema direto e consolidar um avanço tecnológico?


Salles - Todo documentário, aliás, todo filme é ao mesmo tempo uma
narrativa e um documento. O documento seria o registro puro, simples, o que a imagem traz de informação factual sobre o passado. Já a narrativa diz respeito à maneira como as imagens são organizadas. É uma questão de estrutura, de forma. A mim, interessa mais esse segundo aspecto.

Acredito que o valor de "Primárias" resida nisso. É provável que
cinejornais da época tenham filmado cenas não muito diferentes das que encontramos em "Primárias". Por que não nos lembramos delas? Simplesmente porque elas se contentaram em ser documento, não narrativa. Devem estar disponíveis em algum arquivo, mas não têm vida autônoma, não são uma história. Drew e sua equipe inventaram uma nova maneira de narrar, e não obstante o grande valor documental das imagens que produziram, é esta invenção que faz com que eles entrem para a história do documentário.

Folha - Qual é a importância, para "Primárias", da regra de "não pedir a ninguém que repita algo"?

Salles - Richard Leacock, um dos cinegrafista de "Primárias", tem uma boa frase a respeito disso. Ele diz: "Nunca pedir para alguém repetir uma ação, não porque seja imoral, mas porque não funciona". Existe o bom e o mau teatro. A repetição geralmente produz o mau teatro. Mas é preciso dizer que o documentário é um gênero tão aberto, tão resistente a ortodoxias e igrejinhas, que é perfeitamente possível
imaginar um grande filme feito apenas de repetições. Certamente não seria um filme do cinema direto.

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