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22/11/2000 - 04h42

"E Aí, Meu Irmão" é diversão corrosiva

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da Folha de S.Paulo

Em "Ed Wood" , filme de Tim Burton sobre a vida do pior cineasta de todos os tempos, um milionário texano completamente bronco se dispõe a dar dinheiro para os infames projetos do diretor. Mas faz algumas exigências, dentre as quais a de que o filme terminasse com "uma graaande explosão". "A biiig explooosion", insiste o magnata, sem saber que Ed Wood, por mais que estivesse na lona e por mais idiota que fosse, resistiria bravamente às suas ingerências.

O recurso a uma "grande explosão" no final do filme é, sem dúvida, um clichê da ficção científica de má qualidade. Não me esqueço, entretanto, do famoso "Zabriskie Point", de Michelangelo Antonioni, que terminava do mesmo jeito. Só que -o filme é da década de 70- com intenções políticas, contraculturais. Uma bela casa de campo voa pelos ares; a explosão se repete várias vezes, em câmera lenta, como a celebrar o fim de toda a sociedade de consumo.

Aparelhos de TV, máquinas de lavar, armários, estantes, tudo é dinamitado sem pressa, muitas vezes em seguida, como que reiterando a mensagem política do diretor, que hoje nos parece ingênua ou de difícil consecução.

No novo filme dos irmãos Coen, "E Aí, Meu Irmão", há uma cena parecida, que não posso contar direito. Não é uma explosão. Mas vemos, com alegria, uma enorme quantidade de coisas -dezenas de latinhas de brilhantina, móveis, rifles, os próprios personagens do filme- atravessando a tela, numa espécie de apocalipse calmo, de solução improvável e esperada.

Parece que nem todo mundo gostou de "E Aí, Meu Irmão". De minha parte, achei o filme imaginoso e divertidíssimo. Ocorre que, tendo tudo para divertir, essa comédia dos irmãos Coen produz um permanente mal-estar.
Seja pela violência social que retrata -estamos no sul dos Estados Unidos, em plena Depressão-, seja pelo que há de absurdo, de "realismo fantástico" na narração.

Mas "realismo fantástico" não é um bom termo. As aventuras dos três pobres-diabos, que fogem da cadeia e saem pelo Tennessee em busca de um tesouro enterrado, pouco têm a ver com o clima onírico, com as irrupções alegóricas que caracterizam tantos autores latino-americanos. Há realismo, por certo, na fotografia parda, na miséria que aparece em cena, na sensação de que tudo, e não só o sotaque sulista dos personagens, se arrasta pesadamente na história, como uma condenação para a qual não há fuga possível.

Já o "fantástico", aqui, não provém de um exagero, de uma exacerbação imaginativa. Deve muito pouco ao surrealismo; e, ainda que o filme se inspire na "Odisséia", de Homero, traduzindo para o ambiente americano episódios como o das sereias, o da luta contra Polifemo ou contra os pretendentes de Penélope, o registro nada tem de mítico ou de épico.

Talvez o desajuste, bastante criticado aliás, entre o clássico de Homero e as peripécias dos três fugitivos sirva para definir melhor o que se passa nesse filme. O líder dos fugitivos, apesar de também se chamar Ulisses e, como o seu modelo, ser esperto e loquaz, é mais parecido com Lippy, o leão otimista dos desenhos animados, do que com o herói de Homero.

A primeira piada dos irmãos Coen, na verdade, está em propor a comparação de sua história com a "Odisséia". O paralelismo, que certamente perturba quem for procurá-lo, já é um embuste digno do personagem vivido por George Clooney. A "cara-de-pau" com que os episódios mais implausíveis se apresentam ao espectador funcionaria, assim, como uma ampliação em outro nível dos pequenos golpes, mentiras e tramóias em que todos os personagens parecem envolvidos.

No auge da Depressão, candidatos ao governo do Estado prometem dias melhores e mais moralidade nos negócios públicos. Basta ver a cara deles para sentir a dimensão da farsa. Todas as espertezas de Ulisses são primárias e seus desastres são fáceis de prever. Um otimismo americano, cúmplice da desonestidade geral, se reafirma a cada instante e é impiedosamente destruído.

Não é "realismo fantástico": trata-se, talvez, de uma aposta no implausível, no farsesco, em que tanto os personagens quanto o próprio filme estão envolvidos. Uma reunião do Ku Klux Klan, onde um negro será enforcado, aparece no filme de modo ao mesmo tempo leve e sinistro. É que o ritual da irmandade racista, filmado de cima para baixo, imita a coreografia dos musicais de Hollywood.

É na própria indústria cultural, com efeito, que o filme dos irmãos Coen se inspira para criar seu "irrealismo" muito particular. Os fugitivos se estrepam ao longo da história, sem saber que teriam sucesso garantido como ídolos da cultura de massa. O "happy end" do filme é especialmente amargo à medida que consagra, como normalidade recuperada e desejável, o estado de corrupção, miséria e estreiteza em que todos vivem.

A fantasia de "E Aí, Meu Irmão" não funciona como contraponto ao seu realismo, mas parece indicar, na sátira aos clichês americanos, que não há fuga possível, nem grande explosão, nem "fantástico" a que apelar.
Talvez seja este o motivo pelo qual um filme tão divertido encontre resistências do público: sendo um excelente divertimento, corrói a todo instante o propósito de nos divertir. É bom por isso mesmo.
 

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