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10/02/2007 - 09h00

Leia trecho do livro "Viagens no Scriptorium", de Paul Auster

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da Folha de S.Paulo

Leia a seguir trecho do livro "Viagens no Scriptorium", de Paul Auster. Em entrevista publicada hoje na Folha, o escritor fala de seu novo romance, em que um homem idoso luta para lembrar o que fez de errado no passado.

"O velho está sentado na beira da cama estreita, mãos espalmadas sobre os joelhos, cabeça baixa, olhando fixo para o chão. Não faz idéia de que há uma câmera instalada no teto, bem em cima dele. Em silêncio, o obturador clica de segundo em segundo, produzindo oitenta e seis mil e quatrocentas fotos a cada revolução da Terra. Mesmo que ele soubesse que está sendo vigiado, isso não faria a menor diferença. Sua mente está em outra parte, perdida em meio às fantasias que lhe passam pela cabeça enquanto busca uma resposta para a pergunta que o atormenta.

Quem é ele? O que faz aí? Quando chegou e quanto tempo vai ficar? Com um pouco de sorte, o tempo nos dirá. Por enquanto, nossa única tarefa é examinar as fotos com o máximo de atenção e evitar tirar conclusões apressadas.

Há uma série de objetos no quarto, e na superfície de cada um deles foi grudada uma tira de esparadrapo, com uma só palavra escrita em letras de fôrma. Na mesa-de-cabeceira, por exemplo, a palavra é mesa. Na luminária, a palavra é luminária. Mesmo na parede, que não é um objeto no sentido estrito da palavra, há uma tira de esparadrapo em que se lê parede. O velho ergue a cabeça por alguns instantes, vê a parede, vê a tira de esparadrapo colada na parede, e pronuncia suavemente a palavra parede. O que não se pode saber, a esta altura, é se ele está lendo a palavra na tira de esparadrapo ou apenas se referindo à própria parede. Pode ser que não saiba mais ler mas ainda reconheça as coisas pelo que são e consiga chamá-las pelo nome, ou, ao contrário, talvez tenha perdido a capacidade de reconhecer as coisas pelo que são mas ainda saiba ler.

Ele usa um pijama de algodão listrado de amarelo e azul, e seus pés estão calçados com chinelos pretos de couro. Não sabe ao certo onde está. No quarto, sem dúvida, mas em que prédio fica o quarto? Numa casa? Num hospital? Num presídio? Não lembra há quanto tempo está aí nem a natureza das circunstâncias que precipitaram sua remoção para esse lugar. Talvez tenha estado aí desde sempre; talvez esse seja o lugar onde viveu desde o dia em que nasceu. Só o que sabe é que seu coração está repleto de um implacável sentimento de culpa. Ao mesmo tempo, não consegue se livrar da sensação de estar sendo vítima de uma injustiça terrível.

Há uma janela no quarto, mas a persiana está fechada, e, até onde ele lembra, ainda não olhou lá para fora. Tampouco olhou para a porta com sua maçaneta branca de louça. Vive trancado ou é livre para ir e vir como bem entender? Ainda precisa investigar essa questão - sim, porque, como foi dito no primeiro parágrafo deste relato, sua mente está em outra parte, perdeu-se no passado, enquanto ele passeia entre os fantasmas que tem amontoados no cérebro, tentando responder à pergunta que o atormenta.

As fotos não mentem, mas também não contam a história inteira. São apenas um registro da passagem do tempo, a evidência exterior. É difícil, por exemplo, estabelecer a idade do velho com base nessas imagens em preto-e-branco levemente desfocadas. O único fato que pode ser afirmado com alguma certeza é que ele não é jovem, mas a palavra velho é um termo elástico que pode ser aplicado a gente com qualquer coisa entre sessenta e cem anos. Vamos, por isso, deixar de lado o epíteto velho e passar a chamar a pessoa que está no quarto de Blank. Por enquanto, não há necessidade de um primeiro nome."

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