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17/02/2007 - 02h40

Leia trecho do livro "Filósofos na Tormenta"

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da Folha de S. Paulo

Confira trecho do livro "Filósofos na Tormenta", de Elizabeth Roudinesco.

"Vivemos uma época muito estranha. Os grandes acontecimentos, os grandes homens, os grandes pensamentos, as grandes virtudes não param de ser comemorados: o ano Rimbaud, o ano Hugo, o ano Jules Verne. E, entretanto, nunca a revisão dos fundamentos de cada disciplina, de cada doutrina, de cada aventura emancipadora foi tão valorizada. O feminismo, o socialismo e a psicanálise são violentamente repelidos, e Freud, Marx ou Nietzsche, declarados mortos, assim como toda forma de crítica da norma. Fala-se apenas de direito de inventário ou de avaliação, como se a distância necessária a todo procedimento científico se resumisse a uma vasta contabilidade das coisas e dos homens, ou antes dos homens transformados em coisas.

Não penso apenas no negacionismo, que sabemos banido da comunidade dos historiadores, mas que continua a agir subterraneamente, penso antes nesses revisionismos ordinários que tendem, por exemplo, a colocar Vichy e a Resistência em pé de igualdade, em nome da 'necessária' relativização do heroísmo e para decodificar a idéia de rebelião.

Ou, ainda, aquele que consiste, por exemplo, numa astuciosa desvirtuação de textos, em fazer de Salvador Allende um racista, um anti-semita e um eugenista, sob pretexto de denunciar os pretensos mitos fundadores da história mundial do socialismo1.

No que se refere à filosofia, quanto mais seu ensino vê se ameaçado nas escolas ou na universidade por todos que a julgam inútil, superada, grega demais ou alemã demais, impossível de ser avaliada ou encerrada nas categorias do cientificismo - em suma, subversiva demais -, mais se desenvolve a demanda de 'filosofar' ou 'aprender a pensar por si próprio' fora das instituições do Estado: Platão, Sócrates, os materialistas pré-socráticos, os latinos, os modernos, os pós-modernos, os antigos e os novos modernos, os novos ou antigos reacionários. Entre o academicismo que faz um retorno incisivo nos currículos oficiais e a demanda maciça de um ensino 'vivo' e extra-universitário, abre-se uma clivagem que não cessa de se afirmar em um mundo às voltas com o medo da perda da identidade, das fronteiras e das nacionalidades.

São raros os dossiês montados pela imprensa que não sejam dedicados a anúncios catastrofistas: o fim da história, o fim das ideologias, o fim dos professores, o fim do pensamento, o fim do homem, o fim de tudo. Pró ou contra Jean-Paul Sartre? Pró ou contra Raymond Aron? Você prefere ter razão com um e ser contra o outro, ou vice-versa? Será preciso queimar Maio de 1968, seu pensamento, seus pensadores, suas obras, agora julgadas ilegíveis, elitistas, perigosas, antidemocráticas? Os atores dessa revolução dos costumes e dos espíritos tornaram-se ou não burgueses, capitalistas, pequenos sibaritas sem fé nem lei? 1 Cf. Elisabeth Roudinesco, 'La mémoire salie de Salvador Allende', Libération, 12 jul 2005.

Por um pensamento crítico 9

Por toda parte as mesmas perguntas, por toda parte as mesmas respostas que pretendem atestar o novo mal-estar da civilização. O pai desapareceu, mas por que não a mãe?
Afinal, a mãe não seria apenas um pai, e o pai, uma mãe? Por que a juventude não pensa nada? Por que as crianças são insuportáveis? Será por causa de Françoise Dolto, da televisão, da pornografia ou dos quadrinhos? E os mestres do pensamento, em que se transformaram? Estão mortos, em gestação, em hibernação, em vias de extinção? E as mulheres? São capazes, da mesma forma que os homens, de dirigir homens, pensar como homens, serem filósofas? Têm elas o mesmo cérebro, os mesmos neurônios, as mesmas emoções, os mesmos instintos criminosos? Cristo era amante de Maria Madalena e, por conseguinte, a religião cristã é sexuada, dividida entre um pólo feminino e um pólo masculino dominador?

A França entrou em decadência? Você é pró ou contra Spinoza, Darwin, Galileu? Gosta dos Estados Unidos? Heidegger não passou de um nazista? Michel Foucault foi o precursor de Bin Laden, Gilles Deleuze, um toxicômano, Jacques Derrida, um guru desconstruído? Napoleão era tão diferente assim de Hitler? Diga as semelhanças, diga seus pensamentos, avalie seu saber, fale em seu próprio nome. Qual a sua preferência, quais são os menores, os maiores, os mais medíocres, os mais mistificadores, os mais criminosos? Classificar, organizar, calcular, medir, periciar, normalizar. Eis o grau zero das interrogações contemporâneas, que não param de se impor em nome de uma modernidade de fachada que torna suspeita toda forma de inteligência crítica fundada na análise da complexidade dos homens e das coisas. Nunca a sexualidade foi tão livre e nunca a ciência progrediu tanto na exploração do corpo e do cérebro. E, entretanto, nunca o sofrimento psíquico foi tão vivo: solidão, ingestão de psicotrópicos, tédio, cansaço, dieta, obesidade, medicalização de cada minuto da vida. A liberdade de si, tão necessária, e conquistada renhidamente ao longo do século XX, parece ter-se transformado em uma exigência de obrigações puritanas. Quanto ao sofrimento social, é ainda mais insuportável, na medida em que parece em progressão constante, contra um fundo trágico de desemprego dos jovens e de desenraizamento.

Livre do garrote da moral, o sexo não é vivido como correlato de um desejo, mas como uma performance, uma ginástica, um higienismo dos órgãos que só pode levar a uma lassidão mortífera. Como gozar? Como fazer gozar? Quais são o tamanho ideal da vagina, o bom comprimento de um pênis? Quanto tempo? Quantos parceiros em uma vida, uma semana, um único dia, um minuto? Nunca a psicologia do condicionamento e da alienação sexológica ou promíscua foi tão insinuante quanto hoje. A ponto de assistirmos agora a uma amplificação de todas as queixas.

Pois, quanto mais se prometem a felicidade e o ideal de segurança, mais persiste a infelicidade, mais aumenta o risco e mais as vítimas das promessas não cumpridas revoltam-se contra aqueles mesmos que os traíram.

Como não ver nessa curiosa psicologização da existência, que ganhou a sociedade inteira e contribuiu para sua despolitização crescente, a expressão mais soturna do que Michel Foucault e Gilles Deleuze chamavam de 'um fascismozinho ordinário', íntimo, desejado, querido, admitido, celebrado por aquele mesmo que ora é seu protagonista, ora sua vítima? Um 'fascismozinho' que, naturalmente, nada tem a ver com os grandes sistemas fascistas, uma vez que se insinua em cada indivíduo, à sua revelia, sem nunca questionar os sacrossantos princípios dos direitos humanos, do humanismo e da democracia.

Decidi prestar homenagem a seis filósofos franceses -Canguilhem, Sartre, Foucault, Althusser, Deleuze e Derrida- cujas obras são conhecidas e comentadas no mundo inteiro e que tiveram como ponto comum, por meio de suas divergências, discussões e impulsos cúmplices, o confronto crítico não apenas com a questão do engajamento político (isto é, com uma filosofia da liberdade), mas também com a concepção freudiana do inconsciente (isto é, uma filosofia da estrutura). Foram todos estilistas da língua, apaixonados pela arte e a literatura.

É justamente porque tal confronto está inscrito em suas obra e vida que eles podem ser reunidos aqui. Todos eles recusaram, à custa do que eu chamaria de uma travessia da tormenta, transformar-se em servidores de uma normalização do homem, a qual, em sua versão mais experimental, não passa de uma ideologia da submissão a serviço da barbárie. Todos haviam publicado suas obras antes que a televisão e as grandes mídias conquistassem tamanha importância na transmissão dos saberes, e dois deles, Deleuze e Derrida, fixaram as bases de uma nova reflexão sobre a midiologia moderna.

Isso significa que, longe de comemorar sua glória antiga ou me apegar com nostalgia a uma simples releitura de suas obras, tentei mostrar - ao fazer trabalhar o pensamento de uns por intermédio do pensamento dos outros, e privilegiando alguns momentos fulgurantes da vida intelectual francesa da segunda metade do século XX - que apenas a aceitação crítica de uma herança permite pensar com independência e inventar um pensamento para o porvir, um pensamento para tempos melhores, um pensamento da insubmissão, necessariamente infiel."
 

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