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24/02/2007
-
09h00
MANUEL DA COSTA PINTO
Especial para a Folha de S.Paulo
"RAZÃO E SENSIBILIDADE", ensaio de Renato Janine Ribeiro sobre o assassinato do menino João Hélio Fernandes, publicado no Mais! do último domingo, provocou reações virulentas de adesão e repúdio.
Seria insensato, contudo, ver na intervenção do filósofo uma apologia da pena capital. O texto pode levar água para o moinho da imprensa sensacionalista ou dos defensores de esquadrões da morte. Mas esse é um efeito possível da reflexão de Janine -não seu objetivo.
Escrito sob o impacto do crime, o ensaio revela um impasse. "Algo que é muito importante no exercício do pensamento", diz ele, "é que atribuamos aos sentimentos que se apoderam de nós o seu devido peso e papel. Não posso pensar em dissonância completa com o que sinto. A razão, sem dúvida, segura muitas vezes as paixões desenfreadas. (...) Mas isso vale quando a dissonância, insisto, não é completa. Se o que sinto e o que digo discordam em demasia, será preciso aproximá-los. Será preciso criticar os sentimentos pela razão -e a razão pelos sentimentos, que no fundo são o que sustenta os valores."
O argumento foi severamente criticado na própria Folha por Vinicius Torres Freire, que viu nele uma legitimação da fúria emotiva como plataforma de revisões indiscriminadas da lei penal. Entretanto, a intenção do ensaio não é convocar reformas jurídicas. "Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas", diz Janine.
O texto é assumidamente hesitante: expõe o horror diante da brutalidade mas também diante do sentimento de vingança, dessa fantasia lúgubre de ver os criminosos supliciados. Se há algo questionável aí, é o fato de explicitar contradições interiores --atitude que não condiz com o papel que o senso comum espera do intelectual.
A melhor resposta a suas ambigüidades, portanto, seria buscar um correlato desse episódio abominável. Pois a execução legal também pode ser um crime hediondo, como sugere o livro "Reflexões sobre a Pena Capital", publicado há 50 anos, reunindo ensaios de Arthur Koestler ("Reflexões sobre a Forca") e Albert Camus ("Reflexões sobre a Guilhotina").
O volume traz discussões sobre os sistemas penais da Inglaterra (onde o húngaro Koestler se radicara) e da França. O foco, porém, são as vivências desse ritual macabro. O autor de "O Zero e o Infinito", que esteve no corredor da morte durante a Guerra Civil Espanhola, mostra o aspecto grotesco dos enforcamentos e reconstitui casos de carrascos que tentaram suicídio. E Camus lembra a náusea incontrolável de seu pai após assistir a uma decapitação --cena que seria retomada em chave ficcional em "A Peste" e "O Primeiro Homem".
O livro nos ajuda a materializar mentalmente a cena da execução --cujo calculismo é, a seu modo, tão repugnante quanto o crime que acabamos de testemunhar- e a repelir assassinos e verdugos. "Reflexões sobre a Pena Capital" deveria ser publicado urgentemente no Brasil. Mas, como sabemos, há urgências mais capitais.
O carrasco e sua cena
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Especial para a Folha de S.Paulo
"RAZÃO E SENSIBILIDADE", ensaio de Renato Janine Ribeiro sobre o assassinato do menino João Hélio Fernandes, publicado no Mais! do último domingo, provocou reações virulentas de adesão e repúdio.
Seria insensato, contudo, ver na intervenção do filósofo uma apologia da pena capital. O texto pode levar água para o moinho da imprensa sensacionalista ou dos defensores de esquadrões da morte. Mas esse é um efeito possível da reflexão de Janine -não seu objetivo.
Escrito sob o impacto do crime, o ensaio revela um impasse. "Algo que é muito importante no exercício do pensamento", diz ele, "é que atribuamos aos sentimentos que se apoderam de nós o seu devido peso e papel. Não posso pensar em dissonância completa com o que sinto. A razão, sem dúvida, segura muitas vezes as paixões desenfreadas. (...) Mas isso vale quando a dissonância, insisto, não é completa. Se o que sinto e o que digo discordam em demasia, será preciso aproximá-los. Será preciso criticar os sentimentos pela razão -e a razão pelos sentimentos, que no fundo são o que sustenta os valores."
O argumento foi severamente criticado na própria Folha por Vinicius Torres Freire, que viu nele uma legitimação da fúria emotiva como plataforma de revisões indiscriminadas da lei penal. Entretanto, a intenção do ensaio não é convocar reformas jurídicas. "Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas", diz Janine.
O texto é assumidamente hesitante: expõe o horror diante da brutalidade mas também diante do sentimento de vingança, dessa fantasia lúgubre de ver os criminosos supliciados. Se há algo questionável aí, é o fato de explicitar contradições interiores --atitude que não condiz com o papel que o senso comum espera do intelectual.
A melhor resposta a suas ambigüidades, portanto, seria buscar um correlato desse episódio abominável. Pois a execução legal também pode ser um crime hediondo, como sugere o livro "Reflexões sobre a Pena Capital", publicado há 50 anos, reunindo ensaios de Arthur Koestler ("Reflexões sobre a Forca") e Albert Camus ("Reflexões sobre a Guilhotina").
O volume traz discussões sobre os sistemas penais da Inglaterra (onde o húngaro Koestler se radicara) e da França. O foco, porém, são as vivências desse ritual macabro. O autor de "O Zero e o Infinito", que esteve no corredor da morte durante a Guerra Civil Espanhola, mostra o aspecto grotesco dos enforcamentos e reconstitui casos de carrascos que tentaram suicídio. E Camus lembra a náusea incontrolável de seu pai após assistir a uma decapitação --cena que seria retomada em chave ficcional em "A Peste" e "O Primeiro Homem".
O livro nos ajuda a materializar mentalmente a cena da execução --cujo calculismo é, a seu modo, tão repugnante quanto o crime que acabamos de testemunhar- e a repelir assassinos e verdugos. "Reflexões sobre a Pena Capital" deveria ser publicado urgentemente no Brasil. Mas, como sabemos, há urgências mais capitais.
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