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15/03/2007 - 09h00

Leia entrevista com autora de livro sobre a cozinha do Vaticano

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JANAINA FIDALGO
da Folha de S.Paulo

Às vésperas da visita do papa Bento 16 ao Brasil, chega às livrarias livro sobre os bastidores da cozinha do Vaticano. Confira, a seguir, a íntegra da entrevista com Eva Celada, autora de "Os Segredos da Cozinha do Vaticano" --clique para ler o primeiro capítulo em PDF.

O livro é tema de reportagem da Folha desta quinta-feira, que também cita a receita de "Ovos beneditinos sobre leito de bacalhau", um dos caprichos do papa Bento 3º (confira aqui).

Folha - Li que você gosta de escrever desde pequena. A comida e gastronomia também são paixões antigas?

Eva Celada - Gosto muito de comer e sempre senti uma enorme curiosidade pela comida e pelas pessoas quando comem. Por isso acho tão interesse a relação que existe entre a forma de comer de uma família, um país, um povo e sua forma de viver, sua cultura.

Reprodução
"Os Segredos da Cozinha do Vaticano" chega às livrarias
"Os Segredos da Cozinha do Vaticano" chega às livrarias
Além disso, eu tinha uma avó que cozinhava maravilhosamente. Era famosa entre os vizinhos por seus doces. E, como em nossa família não sobrava dinheiro, ela fazia madeleines de dois tipos: umas levavam ovos e outras, mais econômicas, não. Ela guardava as boas para os domingos, debaixo de sua cama, em uma caixa. Quando minha avó saia, eu abria a caixa e pegava algumas, mas ela sempre acabava percebendo e me repreendia, mas a esta altura eu já valorizava o bom.

Folha - Você escreveu muitos livros sobre gastronomia, como "La Cocina Gitana de Matilde Amaya", "La Cocina de la Casa de Alba" e "La Cocina de la Casa Real Española". Como e quando teve a idéia de escrever sobre a cozinha do Vaticano?

Eva Celada - Foi graças a um colega jornalista. Depois de eu ter escrito o livro sobre a cozinha da família real espanhola, ele disse que só me faltava fazer um sobre a cozinha de Deus, e a verdade é que eu pensei: "Quanto eu gostaria de conhecê-lo e saber o que come!" Brincadeiras à parte, graças a esse comentário me ocorreu que seria muito interessante escrever um livro sobre a cozinha vaticana, levando em conta que eles foram durante séculos uma das cortes mais importantes do Ocidente.

Folha - Em muitos momentos do livro, você fala sobre os segredos da vida privada dos papas. Como conseguiu essas informações? Como foi seu trabalho de pesquisa?

Eva Celada - O levantamento de informação e documentação para escrever este livro foi muito laborioso e difícil. Os representantes oficiais do Vaticano não são muito propensos a dar informação "particular" --e consideram que o que comem os papas é uma informação particular. Por essa razão, tive de buscar informações alternativas não-oficiais, mas igualmente interessantes. Contei, além disso, como uma ajuda "divina" --e o digo com humildade. De maneira casual, conheci pessoas que foram vitais na hora de desenvolver o livro.

Além disso, como é lógico, comprei todos os livros sobre o Vaticano que caíram em minhas mãos. Ninguém imagina a quantidade de biografias sobre papas que eu li, algumas realmente chatas, acredite, para conseguir documentação. O livro também contou com a colaboração de uma historiadora, María Teresa Pérez Fuentes, uma documentarista, Ana Ferguson, e duas tradutoras.

Folha - Quanto tempo levou para escrevê-lo? Como e onde pesquisou? E quais foram as principais dificuldades para fazê-lo?

Eva Celada - Levei dois anos para escrever o livro. Estive no Vaticano um mês, bem na época da troca de papa. Tive a sorte de estar na primeira fila dos conclaves, de ver a fumaça e toda a liturgia interessantíssima da troca de papa. Pude estar na missa prévia à primeira reunião do conclave na Basílica de São Pedro, que foi impressionante.

Também fui a muitos restaurantes onde comem os cardeais, visitei o bairro de Bento 16 e falei com os fruteiros, sorveteiros, confeiteiros etc, já que ele fazia suas compras pessoalmente quando era cardeal. Fui ao colégio cardinalício polonês, onde estavam as cozinheiras de João Paulo 2º. Fui a todas as partes e falei com todo mundo.

Folha - Você chegou a visitar a cozinha do Vaticano e deve ter encontrado muitas dificuldades devido ao sigilo no que se refere à vida privada do papa. Como foi essa visita?

Eva Celada - Sim, encontrei muitas dificuldades. Mas se pude entrar no Vaticano, foi graças a uma pessoa que trabalha lá há muitos anos. E, com sua ajuda, pude ir até as cozinhas, estar em Santa Marta (o hotel dos cardeais e centro de seus banquetes oficiais). O Vaticano é um lugar interessantíssimo, muito peculiar e com uma organização impecável. Tudo funciona como uma máquina de precisão, todo mundo sabe o que tem de fazer e o faz.
Claro que o entorno do papa, assim como do resto do colégio cardinalício, tem suas tensões. Nos dias anteriores ao conclave que elegeu Bento 16, dizia-se que era nos restaurantes onde comiam os cardeais que estava sendo decidido o nome do novo papa. É que ao redor de uma mesa se move o mundo.

Folha - O que foi mais difícil na pesquisa? Descobrir como era a cozinha dos papas da antigüidade (já que deve haver poucos documentos e informações), ou dos papas contemporâneos, como João Paulo 2º e Bento 16?

Eva Celada - Tratam-se de dificuldades diferentes. A extensão do tempo, de nada mais e nada menos que 20 séculos, faz com que a investigação histórica não seja fácil. Há que pensar que o primeiro acontecimento gastronômico importante do cristianismo foi "A Última Ceia", em que comeu o primeiro papa da história, São Pedro; o último foi a ceia de coroação de Bento 16.

Há poucos tratados, como você mesma indica, mas muitas referências sobre vários cozinheiros que foram do Vaticano. Se agora a organização do Vaticano é diferente no que se refere à gastronomia, antes funcionava exatamente igual a uma corte. E isso facilita muito as coisas.

Os Médici, que tiveram em sua família vários papas, cederam cozinheiros. No Renascimento, Bartolomeo Scapi foi cozinheiro de cinco papas.

Sem dúvida, na atualidade o acesso aos papas ou a seus serviçais foi muito restrito. Mas pude falar com pessoas muito próximas deles, inclusive com outras que fizeram parte de sua criadagem e que, por estarem aposentadas, me contaram tudo o que está no livro.

Folha - Como seu livro foi recebido pela Igreja, pelo Vaticano? Houve algum tipo de reação, tendo em vista que é tão grande o cuidado com a privacidade dos papas?

Eva Celada - De forma oficial não, mas eu recebi felicitações de pessoas vinculadas ao Vaticano de forma extra-oficial. O livro é respeitoso com a Igreja. Não estava interessada em criar conflito, em fazer uma crítica mordaz sobre a ostentação do Vaticano durante séculos, que tem sido muita.

Quis falar apenas sobre sua gastronomia, protocolo, organização doméstica e costumes culinários, porque contanto as coisas tal e qual foram, cada um pode tirar suas próprias conclusões.

Por outro lado, durante séculos o Vaticano foi uma corte. Os reis europeus tinham de render reverências ao papa. Por isso, dizia-se que o Sumo Pontífice era o rei dos reis, e os ministros, príncipes da Igreja. Como conseqüência, seu status e modo de vida eram uma forma de demonstrar seu poder, que durante séculos foi também político, e não unicamente religioso.

Folha - Cada papa manteve uma relação diferente com a comida. Em sua opinião, essas diferenças alimentares ("Alguns papas comeram como autênticos reis, e outros fizeram do não comer uma forma de vida") têm mais relação com a época vivida por eles ou são um caráter individual de cada um deles?

Eva Celada - Acho que isso dependia mais de cada personalidade, porque os papas sempre tiveram acesso à melhor gastronomia da época. Digamos que não houve época de penúria no Vaticano, e menos ainda para os papas.

Folha - Você conta que grande parte dos papas comiam sozinhos, mas nos diz que para João Paulo 2º a mesa era um lugar de encontro. Bento 16, por outro lado, prefere comer só...

Eva Celada - Até o final do século 19 os papas comiam sozinhos porque ninguém tinha nível suficiente para comer com eles. Sentar-se à mesa, cotovelo com cotovelo, é um sintoma de familiaridade que um papa não mantinha com ninguém. O Sumo comia acompanhado de alguns de seus secretários, que não só não comiam como ficavam de pé lendo alguma passagem da Bíblia.

No Renascimento e na Idade Média se faziam "refeições-missas públicas", em que o papa comia e os demais olhavam, tendo que ajoelhar e levantar quando o papa tomava vinho ou comia pão. Possivelmente dessas refeições venha o costume atual das missas: de ajoelhar na Eucaristia ou ficar de pé em certos momentos da liturgia.

Não é que Bento 16 prefira comer só, é que não tem o mesmo gosto pela sobremesa que João Paulo 2º. Agora o papa sempre come com alguém, normalmente com seu secretário. Acha que no século 21 a comida se converteu em um encontro social de primeira magnitude, e comer só agora não é bem visto.

Folha - Quais são as principais diferenças, em sua opinião, entre a alimentação dos papas Bento 16 e João Paulo 2º?

Eva Celada - Bento 16 gosta da cozinha mais sofisticada e menos
abundante, enquanto João Paulo 2º foi um papa menos sofisticado, gastronomicamente falando, preferia a cozinha polonesa a qualquer outra. Conheceu a alta gastronomia em seu papado, enquanto Bento 16 já estava muito acostumado a ela antes de ser papa.

Há uma piada sobre João Paulo 2º. Em uma cena da celebração em Santa Marta, antes de ser papa, ao ver um menu tão luxuoso, ele disse: "Vocês não deveriam ter se incomodado comigo. Com pizza e massa eu tenho o bastante". Era até esse ponto que ele conhecia a gastronomia italiana, ou seja, nada.

Folha - Há algo em comum entre a alimentação dos papas?

Eva Celada - Muito pouco. Bento 16 é praticamente abstêmio, não toma álcool, come com suco de laranja. João Paulo 2º adorava tomar vinho tinto. Bento 16 adora doce, lancha todos os dias e sofre para jantar. João Paulo 2º adorava os sabores azedos, não lanchava, às vezes tomava um chá. O jantar foi, praticamente até o início de sua enfermidade, a refeição mais importante do dia.

Enquanto para um primava a qualidade, para o segundo, a quantidade. Para Bento 16, a comida é um ato a mais; para João Paulo 2º, a oportunidade de estar com outras pessoas. Além do mais, João Paulo 2º dizia algo muito interessante: "O que se fala na mesa fica na mesa". Com as pessoas que comia fazia esse pacto de honra que sempre cumpria.

Folha - Há algum tipo de estilo gastronômico em razão do país de origem do papa? Ou a tradição italiana é predominante?

Eva Celada - A tradição da cozinha italiana é predominante na cozinha de representação: em Santa Marta, nos banquetes externos atendidos por duas empresas de catering de alto nível e na cozinha dos funcionários.

Mas isso não acontece na cozinha para o papa, que come o que quer, como e quando quer. Eu sempre digo que o papa tem a melhor cozinha do mundo porque come todos os dias a "comida da mãe", que sempre prepara aquilo de que mais gostamos, e, em dias especiais, come pratos de um grande chef.

Folha - Você acha que o papa atual é mais entendido gastronomicamente que João Paulo 2º?

Eva Celada - Claro. Durante quase 30 anos foi uma espécie de ministro, com nível de cardeal, e teve a oportunidade de comer nos lugares mais incríveis do mundo, enquanto João Paulo 2º chegou diretamente da Cracóvia ao Vaticano. Mesmo quando visitava Roma, João Paulo 2º se hospedava no Colégio Polonês. Por isso, teve pouco contato com a cozinha internacional antes de virar papa.

Folha - Quais são as comidas preferidas de Bento 16, fora o pudim de abacaxi?

Eva Celada - Bento 16 é um papa com gostos gastronômicos interessantes, iniciado. É o primeiro papa da história que cozinhava antes de ser papa, já que vivia sozinho e não tinha empregados. É um homem que pode comer uma deliciosa massa com marisco, mas que também janta de forma muito simples uma sopa de sêmola (prato típico do pós-guerra alemão).

Ele gosta de torta de maçã, toma sempre café com leite, gosta da comida bávara do sul da Alemanha, mas a come de maneira moderada: o assado de carne de porco com bolas de batatas e chucrute ou as bolas de pão branco com molho de champignon.

Gosta muito de verduras, prefere peixe a carne, adora todos os tipos de pudins e tem uma queda por sorvetes, principalmente o de tangerina.

Folha - Você acha que o fato de as monjas serem agora as responsáveis pela comida do Vaticano, e não mais chefs de cozinha, seja responsável por esta comida ter mudado tanto?

Eva Celada - Quem atende aos papas são monjas --no caso de João Paulo 2º, eram as irmãs do Sagrado Coração da Cracóvia. Mas a cozinha que se oferece é baseada nos gostos culinários dos papas. Claro que se há algum convidado, procura-se fazer uma comida que agrade a todos. Os chefs que existiram ao longo da história modificaram a comida segundo as correntes gastronômicas da moda. Na Idade Média se fazia o "ovado": colocar um animal dentro de outro; e no menor, um ovo. Na corte papal se fazia isso porque era o máximo do máximo.

Agora se a moda é fazer refeições perfeitamente "limpas", sem espinhas nem ossos, com molhos muito apurados, com profusão de flores nas saladas, mariscos, também se faz. No século 15 já se servia lagosta trufada no Vaticano.

Folha - Há algum menu mais recorrente entre os últimos papas? Quais são os cuidados com a saúde deles?

Eva Celada - O papa tem um médico particular que se ocupa de sua dieta, assim como dos complementos vitamínicos que precise. João Paulo 2º seguia, quando estava muito doente, uma dieta à base de frutas (especialmente mamão), leite, coisas ácidas e infusões, em especial uma de chá verde com menta, que funcionava como uma bebida isotônica. Os menus mais freqüentes no Vaticano são os que contêm massa, peixe e doces. Também têm interesse especial pelos antepastos e aperitivos, e, é claro, pelos sorvetes.

Folha - A cozinha da igreja criou muitas receitas e técnicas gastronômicas. Na sua opinião, quais são as principais heranças?

Eva Celada - Há muita polêmica em relação a quem inventou o que, porque todos querem a autoria dos pratos para si. Os franceses tiveram a habilidade de adaptar e incluir em receituários e tratados culinários muitos pratos inventados por outros. Por exemplo, o "civero" (um guisado de carne, normalmente de veado), que já se chama assim no Vaticano e que os franceses batizaram de "civet" posteriormente.

Sem dúvida, não se pode esconder que as cozinhas vaticanas, as mais sublimes e singulares durante séculos, tiveram os melhores cozinheiros e, portanto, em suas cozinhas foram criados diferentes preparos que se tornaram universais.

O que ocorre é que, como essas receitas não foram registradas em tratados gastronômicos por uma questão de discrição imposta, não se tomou conhecimento de suas origens.

Mas molhos como o verde (também chamado Vaticano) ou o carmelita foram criados em suas cozinhas. Bem como a utilização de queijo mussarela na culinária, o cozimento indireto em banho-maria e uma infinidade de doces. O que conhecemos, por exemplo, como molho bolonhesa chamava-se, antes do conhecimento do tomate na Itália, de molho farnese.

Folha - Quais são seus próximos projetos?

Eva Celada - Há vários projetos, dois deles internacionais, mas prefiro não falar deles até que se confirmem. Toda informação relacionada ao meu trabalho presente e futuro está em meu site (www.evacelada.com), onde os leitores poderão ter contato comigo se desejarem.
 

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