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31/03/2007 - 01h06

Leia a introdução de "Kind of Blue - A História da Obra-Prima de Miles Davis"

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da Folha de S. Paulo

Leia abaixo a introdução de "Kind of Blue - A História da Obra-Prima de Miles Davis", livro de Ashley Kahn que está sendo lançado pela editora Barracuda.

Introdução

Numa manhã de dezembro de 1999, atordoado pela febre do milênio e pelos flocos de neve, entrei num prédio baixo, quase sem janelas, na Tenth Avenue. No toldo da entrada, lia-se "Sony Music Studios". Lá dentro, ao final de um corredor pouco iluminado, onde pôsteres de artistas de rock e rap se enfileiravam nas paredes, portas grossas com janelas do tipo escotilha se abriam para estúdios altamente equipados, onde enormes mesas de som, matrizes repletas de luminosos vermelhos e brancos, dividiam espaço com racks lotados de equipamento de última geração. Pessoas imersas em seus pensamentos passavam apressadas por mim.

Nas poucas vezes em que estive ali, experimentei a mesma sensação: essa
colméia hi-tech, um monumento à superioridade da Sony em tecnologia global, parecia, de alguma forma, transitória. Minha impressão era que um descuidado apertar de interruptor poderia mergulhar o lugar todo na escuridão.

Talvez os sinais de renovação constante - como os batentes revestidos de
plástico - provocassem essa sensação de impermanência, ou quem sabe era a rotatividade dos pôsteres entre uma visita e outra. Não me surpreendeu saber que a Sony Music havia construído seu centro de gravação sobre o que um dia fora o depósito da Twentieth Century-Fox Movietone. Onde latas de filme empoeiradas haviam armazenado a crônica semanal dos dramas e triunfos do mundo, agora operavam quatro andares de estúdios de ponta: a nova tecnologia erguendo-se qual fênix dos vestígios da antiga.

Quatro meses antes eu tinha escrito para o New York Times um ensaio sobre a obra-prima da melancolia Kind of Blue, de Miles Davis, por ocasião do 40º aniversário de seu lançamento. Agora tinha recebido a oportunidade única de ouvir a íntegra das fitas master das duas sessões de gravação que geraram o álbum. A Sony Music - da qual a Columbia Records, que lançou Kind of Blue e permaneceu como a gravadora de Miles durante a maior parte de sua carreira, é subsidiária - não abre com muita freqüência seus arquivos subterrâneos em Nova York, tampouco permite que suas fitas de rolo sejam ouvidas. Quando se lida com gravações de 40 anos, inestimáveis e insubstituíveis, até mesmo o manuseio da fita deve ser levado em conta. Para um fã de jazz como eu, a ocasião possuía o ar rarefeito e histórico de, digamos, a abertura de uma tumba egípcia.

A recepcionista me levou à sala 305. Equipamentos de reprodução sonora,
incluindo um toca-discos sobre uma base de pedra e um seletor de velocidade no qual se lia "78 rpm", ocupavam o lugar. Rodeado por aparelhagem, carretéis de fita espalhados, discos de vinil em vários formatos e outros objetos, estava um engenheiro de som treinado em todos os formatos de áudio - novos, velhos e ultrapassados. Eu estava convencido: nessa sala, qualquer meio de captação de som que já tivesse existido - dos cilindros de cera aos mais avançados discos digitais e computadorizados - voltava à vida.

Delicadamente, o engenheiro colocou um rolo com uma fita acobreada de
meia polegada num aparelho feito especificamente para reproduzir fitas de arquivo gravadas em três canais. Ele fez uma pausa e perguntou se eu estava pronto. (Pronto? A expectativa havia me deixado zonzo por semanas.) Então ele apertou o "play".

A fita começou a passar pelo cabeçote e pude ouvir as vozes de Miles Davis e de seu produtor Irving Townsend, o som imediatamente reconhecível do trompete de Miles, do tenor de John Coltrane, do alto de Cannonball Adderley, e os outros músicos. Escutei a harmonia dos riffs começar e parar e fui me aclimatando ao ritmo do processo de gravação. Alguns engenheiros de som que ficaram sabendo que as masters seriam tocadas naquele dia apareceram e silenciosamente puxaram algumas cadeiras ou se acomodaram pelos cantos para ouvir.

O que eu poderia ouvir ou intuir que revelasse o segredo daquele dia de
primavera em que Davis reuniu seu famoso sexteto (Coltrane, Adderley, Bill Evans, Paul Chambers e Jimmy Cobb, com o pianista Wynton Kelly substituindo Evans em uma faixa) numa igreja convertida em estúdio no
coração de Manhattan? Eu estava cheio de perguntas, ávido por detalhes. O que essa banda conversava enquanto criava música para a posteridade? Aquela seria a voz de Coltrane ou a de Adderley? De que forma - se é que - eles se prepararam? Como era Miles em estúdio? Por que tal take foi interrompido?

Pelo que eu sabia, as três masters, alguns rolos de filme preto-e-branco e as lembranças pouco nítidas do baterista, de um fotógrafo e de um técnico de gravação que estavam no estúdio da East 30th Street naquele dia de 1959 eram praticamente os últimos vestígios da realização do álbum. A escassez de material correlato só serviu para aumentar a mística em torno de Kind of Blue e intensificar minha ânsia de descobrir qualquer coisa que lançasse luz sobre o que parecia ser um momento nebuloso e pouco detalhado. Assim que teve início o primeiro take completo de "Freddie Freeloader", deixei a caneta de lado e me entreguei à música. Quando chegou o solo de Coltrane, eu já havia me transportado para um austero mundo crepuscular que exigia silêncio e contemplação. Depois de anos de dedicada audição, eu tinha muita familiaridade com o álbum, mas o fascínio sedutor daquela música não
diminuíra - ela ainda tinha o poder de silenciar tudo ao seu redor.

Ainda reconhecido como o ápice do moderno quatro décadas após sua gravação, Kind of Blue foi o álbum que inaugurou uma era, e não apenas no jazz. Sua introdução etérea com baixo e piano é reconhecida universalmente.

Tanto aficionados da música erudita quanto roqueiros raivosos louvam sua
sutileza, simplicidade e profundidade emocional. Exemplares do álbum são
dados a amigos e presenteados a amantes. O álbum vendeu milhões de cópias em todo o mundo, o que faz dele o mais vendido do catálogo de Miles Davis e de todos os clássicos de jazz da história.

Significativamente, grande número dessas cópias foi adquirido nos últimos cinco anos e, com certeza, não apenas por velhos colecionadores substituindo seus vinis desgastados: Kind of Blue se perpetua e continua a enfeitiçar um público jovem, mais acostumado à estética rápida e barulhenta do rock e do rap.

O apelo do álbum certamente se intensificou graças à mística pessoal de
Miles. Cool, bem vestido, infinitamente inspirado e sem fazer concessões na arte e na vida, Davis foi - e ainda é - um herói para fãs de jazz, para afroamericanos e para a comunidade musical internacional. "Miles Davis é a minha definição do cool", disse Bob Dylan. "Adorava vê-lo em pequenos clubes. Ele fazia seu solo, virava as costas para a platéia, abaixava o trompete e saía do palco, deixando a banda tocar sozinha, para voltar depois e tocar umas poucas notas finais."

Desde sua morte, em 1991, o mito de Davis só cresceu. Antes disso, porém, Kind of Blue já era considerado sua obra-prima definitiva por uma vasta maioria. Se alguém tivesse um único álbum de Miles - ou apenas um álbum de jazz -, quase sempre seria Kind of Blue. Mesmo 25 anos atrás, o álbum era tão popular quanto uma xícara de açúcar, como conta o guitarrista John Scofield: Lembro de, no começo dos anos 70, na Berklee School [of Music, em Boston], estar com amigos no apartamento de um baixista e ninguém ter o Kind of Blue. Então, às duas da manhã, ele resolveu ir até o vizinho pedir o disco emprestado, sem conhecer ninguém, na certeza absoluta de que teriam um! E tinham! Era como
Sergeant Pepper.

No santuário do jazz, Kind of Blue é uma das relíquias sagradas. Críticos o reverenciam como um marco estilístico, um dos pouquíssimos na longa tradição do jazz, situado no mesmo patamar de discos seminais dos Hot Fives de Louis Armstrong e dos quintetos de bebop de Charlie Parker. Músicos reconhecem sua influência e gravaram centenas de versões da música contida ali. Quincy Jones, produtor, compositor e confidente de Miles, o considera o único álbum (se fosse preciso escolher um) capaz de explicar o jazz.

No entanto, Kind of Blue perdura e prospera para além dos confins da
comunidade jazzística. Não é mais propriedade de uma subcultura musical, é simplesmente grande música e um dos pouquíssimos discos a que nossa cultura concedeu o título de "obra-prima". Muitos de seus admiradores são forçados a recuar para antes da era moderna para fazer comparações. O baterista Elvin Jones ouve o mesmo primor atemporal e a mesma profundidade de sentimento "em alguns movimentos da Nona Sinfonia de Beethoven, ou quando ouço Pablo Casals ao cello desacompanhado". Para a pianista e cantora Shirley Horn, "é como ouvir a Tosca. Você sempre chora, pelo menos eu choro."

No frenesi do fin-de-siècle, Kind of Blue provou sua perenidade, tornando-se uma constante nos primeiros lugares de inúmeras listas de "Melhores do Século" e votações de "Os 100 Mais". Nos anos 90, Hollywood usou o álbum como uma tradução instantânea da modernidade. Na Linha de Fogo mostra o agente secreto Clint Eastwood, solitário, cool, em casa, ouvindo "All Blues". Em A Vida em Preto e Branco, um grupo de colegiais dos anos 50 vivencia seu despertar intelectual ao tema de "So What". Em Noiva em Fuga, a personagem de Julia Roberts presenteia Richard Gere com um vinil original de Kind of Blue.

Quando comecei a pesquisa para este livro, a Sony Music estava em meio à
produção de reedições sofisticadas dos discos de Miles e de jazz em geral, uma mudança auspiciosa em relação à estratégia de relançamento adotada nas décadas anteriores. Gentilmente, eles me forneceram pleno acesso a todas as informações, fotografias e gravações dos seus arquivos, e facilitaram meu contato com antigos funcionários. Localizei relatórios das fitas e das sessões que revelavam a identidade da equipe de gravação que trabalhou em Kind of Blue, cuja maioria - assim como os membros do sexteto, com exceção do baterista Jimmy Cobb - não está mais entre nós. De conversas com engenheiros da Columbia da época, pude formar um quadro do que era trabalhar no 30th Street Studio, antiga igreja onde o álbum nasceu. Examinando os arquivos da companhia, pude dar uma olhada no trabalho realizado internamente pelos departamentos de marketing e divulgação para o lançamento de Kind of Blue no mercado.

Para aproximar o leitor ao máximo do efetivo processo de criação do álbum, coloquei no centro do livro a transcrição e a discussão das sessões de gravação.

Diálogos de estúdio sem edição, entradas falsas e interrupções - aqui reproduzidas pela primeira vez - oferecem um raro vislumbre do que foi o trabalho no estúdio naqueles dois dias. Bastariam as conversas transcritas, que revelam o irrepreensível senso de humor de Cannonball Adderley e as constantes zombarias de Miles dirigidas ao produtor, para deliciar os amantes da música que motivava aquilo tudo.

Ao longo da pesquisa, fui me deparando com uma série de surpresas. Lá
estava o texto de contracapa original de Bill Evans, impecavelmente escrito à mão e quase sem edição. As fotografias do engenheiro de som Fred Plaut, jamais publicadas, que mostram as notações musicais de um tema de estrutura modal. A prova de que a famosa foto de Miles na capa, intensa e escura, foi tirada durante uma apresentação no Apollo Theater. Conversas de rádio inéditas com Adderley e Evans, nas quais falam de Miles e do álbum em detalhes, transmitindo uma dimensão pessoal ausente em entrevistas divulgadas anteriormente.

Além das informações obtidas na pesquisa, fui sendo igualmente tomado
pelos aspectos mais místicos do álbum. A lenda de sua criação pura, em takes únicos. A combinação alquímica de influências de música erudita e música folk. A interação da filosofia menos-é-mais de Miles e do estilo igualmente enxuto de Bill Evans com o restante da banda, mais eloqüente. O drama de Davis, que, movido pela interminável busca por novos estilos, criava uma obra-prima para então abandoná-la em favor de uma próxima empreitada. Fui desafiado a examinar o que havia de verdadeiro na mitologia do disco. Todo o álbum teria sido de fato improvisado, e não planejado? Miles realmente compôs tudo? Kind of Blue mudou o território do jazz para sempre e, em caso positivo, como? Para fazer justiça ao álbum, eu precisava me transportar ao tempo e ao lugar que o gestaram. Falei com o maior número possível de músicos, produtores e críticos - aqueles que estiveram envolvidos na realização do álbum, os que foram influenciados pela sua música ou analisaram seus efeitos. Por fim, conduzi mais de cinqüenta entrevistas para este livro, incluindo conversas com jazzistas veteranos que conheceram Miles ou trabalharam com ele, artistas da nova geração que cresceram ouvindo sua música, produtores, executivos da indústria fonográfica, disc-jóqueis, articulistas e testemunhas da cena do jazz nos anos 50. Dei prioridade às pessoas que estiveram presentes às duas sessões de Kind of Blue: o baterista Jimmy Cobb, o fotógrafo Don Hunstein e o técnico de gravação Bob Waller. Descobri que, embora alguns músicos e produtores relutassem em falar, por acharem que o assunto estava esgotado ou simplesmente por terem sido criticados em retratos nada corteses feitos pelo trompetista em entrevistas ou em sua autobiografia, muitos ansiavam por dividir lembranças e pontos de vista. Dediquei atenção especial àqueles que trabalharam com Miles em e por volta de 1959: os músicos Jimmy Heath, Dave Brubeck, George Russell, John Lewis, Joe Zawinul e Herbie Hancock; os produtores George Avakian e Teo Macero; e o engenheiro de som Frank Laico.

Alguns vêem Kind of Blue como o som da Nova York dos anos 50; alguns,
como o ponto alto da carreira de Miles; outros, como mais um produto de
sucesso de um selo no auge de seu domínio. Com as informações consolidadas, a estrutura do livro surgiu espontaneamente como uma visão telescópica invertida - abre-se com a chegada de Miles a Nova York e repassa sua trajetória, antes de focalizar, take a take, as duas sessões de gravação do álbum. Desse ponto em diante, o livro alarga novamente o foco para traçar a influência do álbum. Textos complementares situam o contexto: a ascensão e proeminência da Columbia Records e seu papel no sucesso de Kind of Blue; as propriedades acústicas inigualáveis que tanto distinguiam a música gravada no 30th Street Studio; o epônimo Freddie Freeloader.

Sempre que contava a profissionais da música ou fãs que pensava escrever um tributo a Kind of Blue, a reação era unanimemente positiva: "Boa idéia"; "Finalmente vamos saber mais sobre o álbum"; "Já estava na hora". Então, depois de uma pequena pausa, e praticamente sem qualquer solicitação de minha parte, seguia-se um testemunho:

QUINCY JONES: "Essa sempre será a minha música, cara. Eu toco Kind of Blue todos os dias - é meu suco de laranja. Ainda soa como se tivesse sido feito ontem."

CHICK COREA: "Uma coisa é tocar uma música ou executar a instrução de uma música, outra é praticamente inventar uma nova linguagem musical, que é o que Kind of Blue fez."

GEORGE RUSSELL: "Kind of Blue é simplesmente um daqueles álbuns espantosos que surgiram naquele período. O solo de Miles em 'So What' é um dos mais belos de todos os tempos."

Com a clareza de memória costumeiramente reservada a desastres nacionais, traumas pessoais ou primeiros encontros românticos, muitos entrevistados relembraram a primeira vez que ouviram Kind of Blue.

Alguns o conheceram em sua primeira execução pública, em 1959, a altas horas num programa de rádio em Cleveland. Outros, numa loja de móveis de Wisconsin que vendia discos; ao vivo num clube noturno de Nova York ou num festival ao ar livre em Toronto; na jukebox de um botequim do Harlem. Houve ainda os que chegaram a ele nos anos 60: entre os LPs mono que um balconista simpático com gravata florida vendia a um dólar cada; tocando pela madrugada numa festa no Greenwich Village. Um conhecido admitiu que ouviu Kind of Blue em uma aula de Zen na faculdade. As propriedades afrodisíacas de Kind of Blue foram mencionadas com freqüência nas reminiscências de homens e mulheres, alguns jovens, outros não tão jovens assim. O veterano do jazz Ben Sidran conta que "claramente era um ótimo disco para seduzir. Posso fechar os olhos e me lembrar de situações com garotas há muito esquecidas". Indagado sobre sua música favorita para namorar, Anthony Kiedis, do Red Hot Chili Peppers, respondeu: "Para os momentos mais demorados, eu coloco Kind of Blue". Por causa da "atmosfera de transe que criava, era como uma ambiência sexual. Uma espécie de Barry White de seu tempo", recorda-se Donald Fagen, do Steely Dan. O ensaísta e teatrólogo Pearl Cleage ficou ligado no álbum em fins dos anos 70: "Confesso que passei 20 muitas noites memoráveis fazendo declarações apaixonadas por meio das intrincadas improvisações de Kind of Blue, quando o espírito blue era a última coisa na minha mente...".

Minha própria descoberta ocorreu em meados dos anos 70, quando um amigo do colégio tirou da coleção de discos de meu pai um LP com uma dobra no canto da capa e explicou: "Este é um clássico". Entre chiados e estalos meu pai deve ouvi-lo bastante, lembro de ter pensado), revelou-se todo um mundo pleno de climas. Embora o som fosse de longe mais simples e mais triste do que qualquer música agitada de big band que eu então supunha ser jazz, de alguma forma aquilo me pareceu instantaneamente familiar.

Se você já é fã do álbum, é possível que se lembre de sua própria "primeira vez". Se não, pergunte ao amigo que apresentou você a Kind of Blue. Traga essa lembrança para o mundo no qual estamos prestes a entrar. Use este livro como uma introdução, um guia de escuta, uma maneira de compreender que há muito mais nesses 40 minutos de grande jazz do que o ouvido é capaz de captar. Permita que este livro mostre a você que, às vezes, o que fala menos é o que mais tem a dizer.

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