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16/05/2007 - 00h24

Confira entrevista com Bill Buford, autor de "Calor"

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SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo, em Washington

Bill Buford estava com a vida ganha. Tinha em seu currículo o fato de ser o editor-fundador da nova fase da "Granta", a melhor revista literária de língua inglesa, criada em 1889 por estudantes de Cambridge, relançada em 1979 e editada pelos próximos 16 anos por esse jornalista da Louisiana, que fez a circulação pular de centenas de exemplares para 100 mil em sua gestão.

Tinha um empregão, editor de literatura de ficção da revista "New Yorker", um dos cargos mais invejados da imprensa local, que ocupava por oito anos e quantos mais quisesse, se dependesse de seus chefes. Contava com um livro de sucesso no currículo, "Entre os Vândalos" (Among the Thugs, 1992), um trabalho jornalístico sobre o fenômeno dos "hooligans", os violentos fãs de futebol britânicos.

Então, o que esse homem calvo como uma cebola descascada faz agora cortando cenouras com a ponta de um de seus dedos pendurada por um pedaço de pele e presa por uma luva cirúrgica, na cozinha do Babbo, um dos restaurantes mais badalados de Manhattan, suando pela testa, num ambiente sem janela, no qual dezenas de funcionários se acotovelam e o telefone é proibido? Sem ganhar nada?

Chame de crise de meia-idade, se quiser. Buford via a casa dos 40 cada vez mais de longe e a vizinhança dos 50 se aproximando. Nos EUA, uns compram um Porsche conversível. Outros arrumam uma amante. Ele resolveu largar tudo e "aprender a cozinhar". Nesse seu "ano sabático" gastronômico, que duraria mais do que 12 meses, foi bancado por dois personagens "maiores do que a vida", na expressão literal em inglês, homens mercuriais, imprevisíveis --e geniais no que fazem.

O exagerado Mario Batali, dono do Babbo e que está para a gastronomia italiana atual nos EUA como o personagem de Don Corleone estava para a Máfia de Nova York do começo do século passado na obra "O Poderoso Chefão", de Mario Puzo, foi seu patrocinador nos primeiros passos, a chegada à cozinha e o domínio da técnica. O intempestivo Dario Cecchini, chamado pela imprensa especializada de "o melhor açougueiro do mundo" e que cita Dante enquanto separa à perfeição uma costela em seu açougue/restaurante na Toscana, foi seu guia espiritual na estada na Itália.

A biografia dos dois mais a experiência do próprio e trechos da história da gastronomia é o que Buford, 53, reúne em " Calor - Aventuras de Um Cozinheiro Amador como Escravo da Cozinha de um Restaurante Famoso, Fazedor de Macarrão e Aprendiz de Açougueiro na Toscana", que a Companhia das Letras lança agora no Brasil. O motivo ele procura explicar em entrevista que deu à Folha por telefone de sua casa em Nova York, onde vive com a mulher, também jornalista, e os filhos.

Folha - O que dá mais trabalho? Reportar ou cozinhar?

Bill Buford - [Risos] Eu ainda acho que escrever é a profissão mais dura de todas. Ser um cozinheiro é um trabalho extenuante fisicamente e não há dúvida de que no final do dia você está sofrendo e cansado, mas é fazer algo com as mãos, enquanto escrever é fazer surgir algo do que não existe.

Folha - Há semelhanças?

Buford - Mais do que se imagina. Pelo menos na Europa e nos EUA, o papel do cozinheiro vem mudando. Antes, chefs eram um bando de esquisitões que só saíam em turma. Hoje, não. Outro dia, jantei com Eric Riperto, do restaurante Le Bernardin, e na mesa estavam Salman Rushdie, intelectuais... Há um reconhecimento que cozinhar e escrever fazem parte da mesma disciplina criativa.

Folha - O livro narra sua transformação, do jornalista que sai originalmente com uma sugestão de reportagem de uma revista e acaba se transformando num "escravo" de uma cozinha e termina na Itália, atrás do "santo graal" do perfeito molho. Em que momento você se viu "cruzando a fronteira"?

Buford - Creio que eu a atravessei várias vezes. No começo, queria apenas fazer o perfil do Mario Batali para a "New Yorker" --e aproveitar para satisfazer uma curiosidade de garoto, de saber como é a vida de um grande chef. Mas acho que a "transformação" mesmo aconteceu quando eu já estava trabalhando há um ano na cozinha de um dos restaurantes dele e já dominava as técnicas dos meus "colegas", que já não me vinham como alguém diferente.

Folha - Li vários artigos de seu livro em que as pessoas o invejam, desejando ter feito algo parecido com suas vidas. Qual a atração do "largar tudo" e se reinventar para a sua geração?

Buford - É uma pergunta interessante... No rumo natural das coisas, nós acabamos virando especialistas, o profissional moderno certamente é focado em apenas um assunto. Fazemos isso porque somos bons, teoricamente, e porque conseguimos ganhar a vida com isso. Mas, ao virarmos expecialistas paramos de aprender. Isso foi o que mais me atraiu. Eu comecei a aprender coisas de novo.

Aprendi a cortar diversos tipos de animais, a preparar a mesma comida de maneiras diferentes, estava num estado de "hipereducação". A outra coisa é que nós realmente nos tornamos terrivelmente ignorantes sobre comida ao longo dos anos. Talvez alguns de nós tivemos sorte o suficiente para crescer num ambiente rural e tivemos uma avó que tivesse alguma conexão com comida caseira, mas somos exceção. E a comida nos interessa, nós precisamos dela para viver, a história e a preparação são assuntos que interessam as pessoas. O que move o livro é sobrepor essa ignorância.

Folha - Havia o desejo de evitar fazer do livro mais uma biografia de mais um chef?

Buford - Sim. Não foi tão difícil, porque Mario é realmente um grande personagem, uma celebridade, mas ele poderia ter morrido em poucas páginas, no sentido de que talvez apenas sua vida não segurasse o interesse do leitor por mais de 400 páginas. Ele falou, "o.k, desde que você não cometa mais indiscrições do que as que fez no artigo" [em que Buford relata seu problema com drogas, como a vez em que ele e amigos assam um disco de pizza apenas para cheirar cocaína sobre ele --a história está no livro]. Abriu completamente sua cozinha para que eu fizesse o que quisesse.

Folha - O sr. concorda que a popularidade do canal pago Food Network mudou a maneira com a qual os americanos se relacionam com a comida, para o bem e para o mal?

Buford - Mudou a vida do Mario, isso é certo. Acho que a maioria dos programas é horrível e muito interessante como um sintoma da psiquê americana. As pessoas assistem não para aprender a cozinhar, mas para ter a experiência de cozinhar sem colocar a mão na massa. É quase uma pornografia, um símbolo de uma cultura tão ignorante sobre sua própria comida que acha interessante assistir pessoas fazendo comida.

Folha - Na mesma linha, qual sua opinião sobre esse frenesi do chamado "alimento orgânico" que parece ter tomado o país nos últimos anos?

Buford - É outro sintoma. A maioria dos americanos sabe que a comida que compra no supermercado é horrível, de maneira geral, especialmente a carne. E a maioria das pessoas não sabe o que fazer a respeito, então "orgãnico" virou uma maneira de minimizar o pânico das pessoas de não ter a menor idéia do que estão comendo.

De certa maneira, é algo positivo com uma origem negativa. No meu caso, eu procuro não pisar em supermercados e comprar meu alimento localmente, em feiras, no açougue. Nova York é um lugar complicado para comprar comida, porque a maioria das pessoas não cozinha, mas tento respeitar a regra de ouro do cozinheiro: conhecer as pessoas que lhe vendem alimentos pelo primeiro nome.

Folha - Se fosse jantar fora agora, aonde iria?

Buford - Em Nova York, acho que o melhor restaurante é o Jean Georges [1 Central Park West]. O melhor italiano na verdade não é do Mario, mas um lugar chamado Beppe [45 East 22nd Street]. Em Londres, eu adoro o St. Johns [26 St. John Street], do Fergus Henderson, que escreveu aquele livro ótimo, "Nose to Tail Eating" (Bloomsbury, 2004).

Folha - Nada brasileiro?

Buford - Não ainda. Estou aprendendo sua culinária. Na verdade, devo ir ao Brasil pela primeira vez para a apuração de um artigo sobre chocolate que estou escrevendo para a "New Yorker" há alguns meses.

Folha - É impossível não comparar seu livro ao "Cozinha Confidencial" (2000), de Anthony Bourdain, com a diferença de que ele fez o caminho oposto, de funcionário de uma cozinha a repórter e escritor. Leu o livro dele antes de fazer o seu?

Buford - Tony é um grande amigo meu, escreveu uma resenha elogiosa de meu livro para o site Amazon. Por coincidência, eu era editor da "New Yorker" quando "Cozinha Confidencial" chegou, como um manuscrito não-solicitado. Virou um livro depois de sair na revista como um artigo. Na verdade, ele me disse que estava na cozinha do [restaurante nova-iorquino] Les Halles dourando algo na panela quando recebeu o telefonema da revista dizendo que publicariam seu texto.

Seu livro é uma grande e poética ode sobre uma vida inteira de trabalho na cozinha, mas eu fiz questão de não o ler enquanto eu fazia o mesmo, porque seria necessariamente influenciado. De qualquer maneira, ele tenta sair da cozinha em seu livro, enquanto eu tento exatamente o oposto em meu, ser aceito.

Folha - Sobre o que será seu próximo trabalho?

Buford - Hoje em dia eu escrevo sobre gastronomia para a "New Yorker", numa coluna que deve se tornar mensal nas próximas edições; meu último texto foi sobre o [chef escocês] Gordon Ramsey e estou trabalhando em dois artigos, um sobre carne outro sobre chocolate. Devo escrever um livro sobre uma viagem à França semelhante à que fiz à Itália para "Calor". Meu próximo livro deve ser uma autobiografia chamada "Speed", uma breve história sobre a indústria aeroespacial californiana, e a contribuição de meu pai para seu fracasso...

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