Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
02/12/2000 - 04h51

Autor de quatro livros permanece inédito em vendas

Publicidade

MARCELO RUBENS PAIVA, da Folha de S.Paulo

Euclides da Cunha era engenheiro e escreveu sua grande obra, "Os Sertões", enquanto construía uma ponte. Rubem Fonseca era delegado de polícia. Guimarães Rosa era médico e diplomata, como era diplomata Vinicius de Moraes. Machado de Assis era burocrata, como Kafka.

José Marques Sarmento, 43, é eletricista e filho de pais analfabetos. Foi criado no alto sertão da Paraíba, com oito irmãos. O pai combateu cangaceiros, na década de 30. O filho combate o preconceito: tem quatro romances publicados por ele mesmo e nunca vendeu um exemplar.

"Meus quatro livros são em estilos diferentes. Sou um autor contemporâneo. Nunca fiz uma noite de autógrafos. Tenho medo do fracasso", explica.

Sarmento foi alfabetizado aos poucos, até os 14 anos. Ia para a escola quando havia professor no distrito agrícola de São Gonçalo. Completou o 1º grau. Lia qualquer coisa que aparecesse, livros de faroeste, gângsteres, livros de bolso passados de mão em mão.

Trabalhou na lavoura até os 20 anos, quando se mudou para São Paulo, em 77. "Meu irmão morava em São Paulo. Nordestino é saudoso e passa o Natal em casa. Volta para a sua cidade de óculos, com radinho, radiola, discos. É assim que passamos a sonhar com São Paulo", conta.

Seguindo os passos do irmão, desembarcou por aqui, foi ajudante de metalúrgico e trabalhou no metrô; ajudou a construir, junto com muitos conterrâneos, a estação da praça da Sé.

Num quarto pequeno e entulhado na rua Flórida, no Brás, onde morava, Sarmento começou a produzir sua obra literária. Ainda hoje, escreve à mão, em cadernos, e depois digita numa máquina.

Suas influências são amplas: Graciliano Ramos, Borges, Dostoiévsky. Seu método? "Vou escrevendo. O tema vai nascendo. E vem, vem, não pára de vir. O último foi o único livro para o qual fiz um roteiro, mas não o segui."

Alguém discute literatura com ele, orienta sua leitura? "Com você é a primeira vez que estou discutindo literatura. Leio um livro quando alguém fala que é bom."

O que movimenta sua literatura? "O homem. A angústia do homem, do ser humano, pois ninguém conhece nem respeita ninguém. Acabou. É a favela, o esgoto, o lixo. Da minha janela, vejo a favela e mostro para os meus filhos. Sempre me senti um socialista. A maioria dos meus escritos são bem engajados", diz.

Sarmento chegou a enviar originais a duas editoras tradicionais de São Paulo. Recebeu cartas, agradecendo o envio e informando que os compromissos e cotas das empresas estavam já estabelecidos. Junto às cartas, devolviam os originais.

"Como eletricista, não tenho nenhuma chance de chegar a uma editora grande. Não vão perder tempo lendo um livro do "Zequinha das Flores'", afirma.

O eletricista foi à luta. Fez cursos de cinema e de artes dramáticas. Chegou a fazer pontas em filmes da "boca". Trabalhou como técnico em produções pornográficas. Atuou "num filme sério", como define "A Próxima Vítima" (João Batista de Andrade), em que contracenou com Antônio Fagundes.

Como técnico eletricista, trabalhou com Walter Hugo Khouri, José Antônio Garcia, Tata Amaral e outros. Descobriu que muitos filmavam com dinheiro de leis de incentivo. Soube de uma lei de incentivo municipal (10.923, a Lei Marcos Mendonça).

Tinha dois livros "na gaveta" e escrevia um terceiro. Preparou a papelada, conseguiu dinheiro de locadoras de equipamentos de cinema e financiou dois romances, "Um Homem Quase Perfeito", de 97, e "Revolução dos Corvos", de 85, com tiragem de mil cópias cada, em edições pagas. Cada tiragem custou R$ 10,3 mil.

Seu primeiro livro, "Só Falando Muito Eu Consegui a Madonna", de 82, é, num certo sentido, desprezado pelo autor. Como todo escritor, Sarmento torce o nariz para seus primeiros passos.

"(O livro) É meio esquisito. Não é na primeira nem na terceira pessoa. Misturei teatro, poesia, crônicas e enderecei à Madonna, como se fosse o namorado dela."

O Nordeste é tema recorrente em sua obra. "Um Homem Quase Perfeito" inspira-se em "um personagem engraçado que tinha na cidade". Por que quase perfeito? "O cara era um trabalhador, com família. Mas bebia,
maltratava as mulheres."

Atualmente morando no Campo Limpo com quatro filhos e a mulher, vê de sua janela a violência de São Paulo fervilhando e publica seu quarto romance, "Urbanóides, um Caos Paulistano". Pagou R$ 10 pela edição de cada um dos 500 exemplares.

"Urbanóide é aquele cara que não sabe nada de cidadania, não respeita o ser humano."

O leitor
"Nunca vendi um livro. Dou pra quem quer ler. Estão lá em casa. Tenho 1.500. Consegui colocar "Um Homem Quase Perfeito" numa distribuidora que o enviou a grandes livrarias. Como ninguém me conhece, foram devolvidos. Para não me sentir fracassado, deixei-os lá", conta.

Mas Sarmento tem admiradores. Um, especialmente, o emociona. É um leitor que pegou casualmente "Um Homem Quase Perfeito" numa biblioteca pública. O autor teve de doar 50 exemplares do livro a bibliotecas municipais, devido à lei de incentivo.

O admirador mandou uma carta: "Gostei muito de sua obra, sou paulista e nunca fui ao sertão, cresci e passei meus 18 anos nesta "selva de
pedra", mas, com seu livro, pude ver cada cenário, cada personagem, a terra rachada, o calor... Pude repensar sobre os temperamentos humanos".

Sarmento, "um dia", distribuiu pelo Morumbi seus livros em bancas. Lá, custam R$ 15, cada exemplar. O escritor não sabe como será seu quinto livro. Mas já escreve poemas em um caderno. "Sou basicamente um poeta", diz.

Além de bancas do Morumbi, seus livros podem ser encontrados na livraria Asabeça (r. Deputado Lacerda Franco, 187, Pinheiros, tel. 0/xx/11/815-4259) e na editora Scortecci (00/xx/11/3031-2298).
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página