Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
23/12/2000 - 10h54

"A Ciência dos Sonhos" analisa o inconsciente no "capitalismo"

Publicidade

da Folha de S. Paulo

Sigmund Freud bateu a caçoleta em 1939. De lá para cá, o capitalismo seguiu o seu curso, ganhando para cada fase um adjetivo: capitalismo financeiro, especulativo, volátil, digital; de modo que agora surge mais um qualificativo: o de capitalismo psicoativo, drogado ou aditivo, que é o paraíso da mais-valia farmacopéica, a sinistra aliança entre o lucro dos remédios e a indústria dos alimentos. Capital e trabalho transgênicos.

O léxico da psiquiatria contemporânea é a prova de que a ciência que cuida da saúde mental tem por objetivo o efeito das substâncias psicoativas nos organismos individuais, pouco importando a classe social a que as pessoas pertencem, pois a cada dia aumenta o número de portadores do modo de vida neuroléptico, seja usuário ou abstinente.

A maioria dos enfermos em psiquiatria faz uso nocivo e arriscado de droga, de álcool, de cafeína, de barbitúrico, de analgésico, de ansiolíticos, de esteróides e de antidepressivos.

É cada vez mais corriqueiro o indivíduo apresentar-se como um adicto permanente ou dipso-drogado esporádico. Pode-se dizer que a vida cultural está movida por um sentimento ubíquo e onipresente de alucinose, inclusive na legítima vontade de dormir.

Somos todos, em grau variado, co-dependentes da ebriedade contemporânea do capitalismo. Destarte, nos últimos 50 anos, o emprego do termo pós-moderno tem alguma coisa de neuroanfitamínico.

O nível de toxidade atingiu até a comida. Comida contaminada. Vivemos a era do frango biônico, do arroz com feijão clonado.

É por isso que, diante do modo psicodisléptico de viver, a própria análise do comportamento pós-moderno reveste-se muitas vezes de um caráter "borderline", sem esquecer a maioria da população drogada pelo aparelho de TV, apresentando perfil oniróide, isto é, a versão caricata e boçal do onírico. Os sonhos não têm um final: "The end".

A psicanalista brasileira Fani Hisgail está de parabéns por organizar um livro que mostra o quanto a psicanálise freudiana foi assimilada entre nós. Aliás, desde a primeira década do século 20, o Brasil é um país que mimou a psicanálise de Freud, sendo pioneiro em sua aceitação, tanto que o doutor Silva Mello (1886-1973) em "As Ilusões da Psicanálise" diz que Freud teria comprado uma gramática para aprender o idioma português.

O sonho continua sendo o grande enigma existencial. Nele o dizer do desejo inconsciente é sempre de conteúdo sexual. O inconsciente é sexual ou não é inconsciente. Do feto intra-uterino ao fato vídeo pornô.

O problema da metapsicologia como descrição do aparelho psíquico é passar ao largo da estrutura orgânica do cérebro, assim como a lacuna da neurobiologia é não levar em conta o sujeito desejante, ou seja: a subjetividade do sonho. Mesmo o palpite do jogo do bicho.

Nada impede, contudo, que haja convergência dessas duas perspectivas, espécie de psiconeurolobiologia, de resto já desenvolvida com esplendor por Silva Mello, no Rio de Janeiro das décadas de 40, 50 e 60, o primeiro médico no Brasil a conhecer e aplicar a teoria freudiana.

Afinal, a psicanálise faz parte da medicina, ainda que Freud, segundo Ernest Jones, fosse desprovido de um genuíno temperamento médico. A explicação neurobiológica não esgota a complexidade psíquica do fenômeno onírico, se bem que hoje em dia as pessoas estejam menos interessadas no sonho que no sono. É este que traz o sonho e, detalhe, ninguém inventa posição nova de dormir. Nem de ponta-cabeça.

Nos dias de hoje, dormir é um distúrbio que passou a ser regra do sono. Sono perturbado. Ronco sonoro acompanhado de narcolepsia, que é a vontade súbita de dormir por períodos curtos, e a apnéia, a respiração suspensa de repente durante o sono.

Atualmente o "sleep" pirado tornou-se a superestrutura do capitalismo psicoativo. Por conseguinte, o sono não consegue mais desligar-se do ambiente externo. Estamos condenados ao sono patológico do "rapid eyes movement", o sono da máquina dessincronizada. Taquicardia. Brandicardia. Atonia muscular. Enurese noturna. Sonilóquio. Ereções penianas dolorosas, enfim, insônia junto com a fobia de dormir, por mais paradoxal que isso seja. A inevitável depressão matutina.

O sono delta, profundo, de ondas lentas, com um mínimo de atividade mental, reparador das energias, virou loteria. Lembro Luís da Câmara Cascudo: "Dormir é desarmar-se perante o mistério". O que prepondera, em todas as camadas sociais, é o sono zumbi. Por isso mesmo vai-se configurando como utopia decaída o retorno ao sono calmo, quieto, tranquilo e pacífico.

Lamentavelmente, ninguém levou a sério quando o escritor surrealista André Breton reclamou que não se tinha feito ainda a história do homem dormindo.

Livro:A Ciência dos Sonhos - Um Século de Interpretação Freudiana
Autor: Fani Hisgail
Editora: Unimarco
Quanto: R$ 23 (290 págs.)
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página