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06/07/2001 - 20h48

Conheça Vicente, camelô que vende CDs piratas no centro de SP

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FRANCISCO MADUREIRA
Editor de Informática da Folha Online
MARCELO GRIMBERG
da Folha de S.Paulo

Depois do incidente do policial, fomos na direção contrária, pela própria Santa Ifigênia, na calçada oposta. Mais e mais mostruários de caixas de CDs vazias pelo caminho. Até que, no meio de um dos quarteirões seguintes, decidimos parar em uma barraca e conversar. Mais uma vez, é um rapaz jovem que nos aborda. "Programa para computador?"

Dizemos nossa real intenção, a de conversar sobre a venda de software pirata. Ele se dirige a um homem mais velho, que está um pouco adiante, em frente a um dos pequenos shoppings de estandes da Santa Ifigênia. Eles conversam durante alguns instantes, sem demonstrar interesse em nos chamar. Vamos até lá e nos apresentamos.

Acabávamos de conhecer Vicente, camelô há oito anos e vendedor de software pirata há três. Nos 30 minutos seguintes, ele falou quase que ininterruptamente, de maneira lúcida. Ele nos deixou calados, ouvindo o que, não fosse nossa constante dúvida jornalística, chamaríamos de "sabedoria popular".

— Olha, não importa quem vocês sejam, sejam da lei, sejam realmente quem dizem ser. Mas eu tenho aqui um modo de vida. Aqui está meu ganha-pão, e a gente aqui na Santa Ifigênia tem nossas próprias leis, diferentes das leis que vêm de cima, que não têm nada a ver com a nossa realidade. Esse pessoal da Microsoft [ele se referia à Abes, Associação Brasileira de Empresas de Software, que promove diversas batidas na região em conjunto com a polícia] vem aqui com aquele advogado... Eu chego aqui para ele e mostro os programas que tenho aqui na barraca, tudo original.

"Quanto custa esse jogo aqui?", pergunta um garoto que pára em frente à barraca, apontando para uma uma caixa original do jogo de corrida Need for Speed III.

— Esse custa R$ 40, amigo. É original, vem com certificado e garantia.

"Ah... tá bom, valeu." (clique aqui para conhecer um pouco mais sobre o ponto de vista de quem compra software pirata)

"Mas você só vende programas originais?", perguntamos.

— Olha, não é isso. A questão é que esses caras grandes dos Estados Unidos, que nem esse Bill Gates aí, eles sabem só um pouco mais que os outros e se aproveitam disso. Fazem uns programas vagabundos e vendem por mil, dois mil reais. Veja bem, se um aluno de faculdade precisa fazer um desenho para um trabalho. Ele tem todo esse dinheiro pra gastar com um programa? Claro que não! E ele também não vai comprar um parecido, só que mais vagabundo. Ele vem aqui e consegue aquele que ele quer por dez reais.

— E veja bem, como eu te disse, não importa quem vocês são. Isso aqui é meu modo de vida. Olha, eu trabalho aqui e não tenho chefe, não tenho ninguém nas minhas costas. Se eu fosse trabalhar com patrão, ia tirar trezentos, quatrocentos por mês. Aqui posso tirar o dobro disso. O governo acha que brinca com o povo, e a gente que vive aqui na Santa Ifigênia sabe disso. E não vai querer ser empregado, entrar nesse outro estamento, se neste, em que a gente está, dá para ganhar mais, viver melhor. Eu pago faculdade para o meu filho, cara! Se eu trabalhasse de empregado, você acha que ia dar?

"É você mesmo quem grava os CDs?"

— Não, não... Esse pessoal que vocês encontram por aqui, eles só vendem. Existem os distribuidores, os caras que passam por aqui de vez em quando e vendem pra gente. É pegar ou levar. A gente nem conhece direito quem são os caras, mas se o CD que ele vende der problema, a gente não compra mais, e ele se queima.

"Você vende cada CD por R$ 10. Por quanto você compra?

— R$ 3. Se for lançamento, R$ 5. Todos os fornecedores têm o mesmo preço. O pessoal da Paulista vende mais barato porque eles têm vantagem. Vê se a polícia fecha alguma loja, algum estande lá...

"A gente pode falar com algum desses fornecedores? Você nos indicaria alguém?"

— Não, a gente não conhece nada sobre eles, a não ser que aparecem aqui de vez em quando. O que eu posso falar é o que o que a gente fala quando policial aparece. Quer saber quem é meu fornecedor? Espera aqui do meu lado. Não sei quando ele vem, mas, mais cedo ou mais tarde, aparece alguém.

"Por que os CDs não ficam mais expostos como ficavam antigamente? Onde estão os CDs de verdade?"

— Vocês tão vendo aqueles dois caras encostados lá no boteco? —, disse Vicente, indicando com um movimento do queixo o outro lado da rua. Dois homens bebiam café recostados em um balcão. Eram altos. Vestiam calça jeans e camisas largas.

— Eles são gambés [policiais]. A gente não pode deixar mais nada à mostra. Na época em que esse pessoal da Microsoft fazia batida por aqui todo dia, teve colega meu que perdeu 100, 150 CDs num dia. Isso às vezes é o que o cara demora duas semanas pra vender, é o ganha pão de duas semanas dele. A partir daí o pessoal começou a esconder o mostruário.

"Tem muita gente que reclama? Como é que você faz com quem tem um problema com o CD, você troca, como funciona?"

— Olha, se a pessoa tem um problema, pode vir falar com a gente. O máximo que a gente faz é trocar o CD, dar uma outra cópia pra ele. Outra coisa é devolver o dinheiro. Mas isso é raro. A gente sabe que tem cara que compra e age de má-fé. Chega em casa, faz uma cópia pra ele, volta, diz que tem problema e pede o dinheiro de volta.

"Quanto você vende por dia?"

— Ah, isso varia. Tem ponto que vende mais, tem quem vende menos. Mas dá uns cinco, dez por dia.

"Ô, Vicente! Como é que vai, velho? Você tem aí aquele programa que eu te pedi na semana passada?", perguntou um senhor de uns 60 anos, cabelos brancos, que veio à barraca. "Sabe como é, meu filho tá precisando desse programa."

— Olha, chegou sim. Mas se você puder, dá uma volta, passa por aqui daqui a uns 20 minutos, meia hora, que tem polícia aí, entende?

"É sempre assim que ocorre a venda?", perguntamos.

— É. Preciso pedir pro cliente dar uma volta, não posso entregar o CD para ele. Aqueles caras estão lá para ver isso. Não dá pra dar moleza, que eles te desrespeitam.

"A gente viu um policial à paisana que passou em uma barraca, pegou um CD e saiu."

— Isso é normal. Tem policial que faz isso, sim. Ou chega falando que vai apreender, ou pega sem falar nada. Mas também tem aqueles que te respeitam, sabe? Que chegam pra você e dizem: "A gente sabe que você tá ganhando seu dinheiro, a gente também tá, então alivia aí, tira essas coisas da vista".

Vicente parece falar de tráfico de drogas, e não de venda de CDs de programas.

— Cada um tem uma consciência. É a mesma coisa o que vocês vão fazer com o que eu estou falando. Vocês provavelmente vão escrever para pessoas de outro estamento, contar o que se passa por aqui. Vocês podem distorcer tudo ou falar a verdade. A consciência de vocês é que vai dizer.

Leia a reportagem na sequência:
Santa Ifigênia é abastecida por "fornecedores"
Policiais trocam silêncio por CDs piratas
Conheça Vicente, camelô do centro de SP
Empresas acham que preço não é desculpa
Para comprador, preço é o maior atrativo
 

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