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30/03/2007 - 20h10

Líder antiapartheid sul-africano critica questão racial no Brasil

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ANDREA MURTA
da Folha Online

Mesmo aposentado após 47 anos de luta antiapartheid na África do Sul, que liderou ao lado de Nelson Mandela, o ativista sul-africano Mac Maharaj ainda se mantém ativo no movimento pela igualdade racial em todo o mundo --inclusive no Brasil.

"A desigualdade baseada na cor é uma realidade [no Brasil] . Se há pessoas que criticam as ações afirmativas, tudo bem, vamos discutir o assunto --mas é preciso começar dizendo "sim, temos uma desigualdade, e como vamos lidar com ela?", afirmou Maharaj nesta sexta-feira em entrevista por telefone à Folha Online. "O Brasil tem a obrigação de transformar sua sociedade de forma que toda criança tenha as mesmas oportunidades", acrescentou.

Divulgação
O ativista sul-africano Mac Maharaj, co-fundador do Movimento Anti-Apartheid
O ativista sul-africano Mac Maharaj, co-fundador do Movimento Anti-Apartheid
Hoje, o co-fundador do movimento antiapartheid na África do Sul não se limita a buscar a igualdade racial. Seu projeto inclui a luta pela democracia e a igualdade de oportunidades em escala global. "Um dos maiores exemplos de desigualdade no mundo é no Conselho de Segurança da ONU, no qual os mesmos cinco países têm direito a veto [EUA, China, Rússia, Reino Unido e França] desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945)", diz o líder.

Pouco antes de comemorar 72 anos, Maharaj também faz parte do Projeto Democracia no Bennington College, em Vermont, Estados Unidos, onde leciona. Embora esteja afastado da política sul-africana, ele ainda mantém contato com Mandela, de quem ficou amigo após ser mantido preso ao seu lado durante 12 anos por sua atuação contra o apartheid.

Em São Paulo para participar nesta sexta-feira de uma palestra na Unipalmares (Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares), Maharaj falou à Folha Online a respeito de suas experiências ao lado de Mandela e sobre o racismo no Brasil e no mundo.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Folha Online- Desde que começou seu envolvimento com política na África do Sul do apartheid, muita coisa mudou no mundo em termos de igualdade. Quais são, na sua opinião, os principais desafios hoje?

Mac Maharaj
- Comecei a lutar pela liberdade e igualdade na África do Sul em 1953. Desde então, o mundo gradualmente compreendeu que a discriminação em qualquer forma --raça, religião, sexo-- é inaceitável. Mas a prática da discriminação ainda acontece. Hoje, a fome, pobreza, desemprego, tanto em escala global quanto nacional, continuam a ser os maiores impedimentos para que a igualdade que existe hoje em Constituições em muitas partes do mundo se torne realidade. Ainda precisamos de um engajamento maior.

Folha Online - Já se passaram mais de 12 anos desde as primeiras eleições democráticas na África do Sul, quando Nelson Mandela foi eleito presidente (1994-1999). Como o sr. avalia hoje a situação do racismo e da igualdade no país?

Maharaj
- Acho que tivemos um enorme progresso na África do Sul nos últimos 12 anos. A violência como forma de resolver conflitos políticos diminuiu muito, e estabelecemos os direitos humanos de todos os indivíduos na Constituição. Temos instituições que garantem isso. Mas o desafio agora é levar essas leis para as práticas cotidianas das pessoas. Parte da desigualdade no país é causada pela pobreza, pelo desemprego, pela economia, mas outra parte é da ideologia de muitas pessoas. Não podemos mudar o jeito que as pessoas pensam apenas com novas leis. Precisamos de educação sistemática para desenvolver a consciência das pessoas. As leis podem nos proteger, mas é preciso que todas as pessoas sejam responsabilizadas por suas ações e prestem contas de seu comportamento.

Folha Online - Apesar de ter se afastado dos cargos públicos em 1999, o sr. continua envolvido nos bastidores da política da África do sul?

Maharaj
- Não. Me aposentei da política em 2000. Saí do governo nas eleições de 1999, e depois me aposentei de todos os cargos políticos. Agora me concentro em olhar para o mundo e em levar adiante o movimento pela democracia de outras formas.

Folha Online- A África do Sul tem forte histórico de implementação de ações afirmativas, como a reserva de vagas em empresas e no sistema educacional para os negros. Qual é a opinião do sr. sobre as ações afirmativas? Qual o papel delas em corrigir os efeitos do apartheid?

Maharaj
- Acho que há argumentos fortes a favor da ação afirmativa na África do Sul dado o histórico de desigualdades que foram impostas em nosso país. Ao mesmo tempo, é muito importante avaliarmos os resultados e compararmos com os objetivos da proposta. Não podemos ter ações afirmativas como se elas fossem resolver todos os problemas. Elas devem ser adaptadas para a realidade de cada setor de uma dada sociedade, e devem ser aplicadas de forma que não criem mais divisões na sociedade.

Na África do Sul, há muitas críticas sobre a forma como as ações afirmativas estão sendo aplicadas, mas há aceitação de esse é um mecanismo necessário. Não são feitas apenas na questão racial. Por exemplo, começamos a obrigar listas de candidatos de cada partido para o Parlamento a conterem no mínimo 30% de vagas para mulheres. Conseguimos isso. Agora estamos tentando aumentar o número para 50%.

Mas ainda estamos muito distantes de alcançarmos a igualdade verdadeira. As cotas podem nos levar até um certo ponto, mas a realidade é que parte da desigualdade é causada pela falta de oportunidades econômicas iguais para todos os cidadãos.

Folha Online - No Brasil há muita discussão sobre as ações afirmativas, especialmente no que se refere à reserva de vagas no ensino público. Qual é a opinião do sr. sobre as cotas nas universidades?

Maharaj
- É difícil comentar sobre políticas no Brasil, porque não estou familiarizado com a discussão aqui. Mas posso dizer que a desigualdade baseada na cor é uma realidade no país. E é obrigação de toda a sociedade atuar para acabar com o racismo. Se há pessoas que acham que a ação afirmativa é errada, tudo bem, vamos nos sentar e discutir o assunto. Mas a discussão precisa começar dizendo "sim, temos uma desigualdade, e como vamos lidar com ela?".

Acredito que toda criança que sofre discriminação, seja por cor, raça, religião etc, é uma pessoa a menos que irá contribuir para o desenvolvimento de nossa sociedade. Há pessoas que foram privilegiadas no passado e outras que não foram. O Brasil tem a obrigação de transformar sua sociedade de forma que toda criança tenha as mesmas oportunidades.

Folha Online- O sr. atualmente dá aulas em Vermont, nos Estados Unidos, um país com um longo histórico de racismo e negação de direitos. Como o sr. avalia a situação da população negra nos EUA hoje?

Maharaj
- Minhas aulas em Vermont acontecem em meio período, duas vezes por ano, por sete semanas. Adoro dar aulas, é o que me mantém vivo e interessado no mundo.

Há um debate importante sobre ações afirmativas hoje nos EUA, e muitas pessoas dizem que elas não geraram os resultados esperados. Mas a realidade continua a ser de que a igualdade de oportunidades é um objetivo ainda a ser alcançado. Em muitos aspectos, com as ações afirmativas, muitas pessoas tiveram oportunidades inéditas, e é inegável que muitas outras não tiveram oportunidades devido a desigualdades históricas.

Os EUA são uma sociedade em movimento, uma das mais ricas do mundo, e continua a ter problemas de desigualdade. Isso mostra como o problema é global, e todas as sociedades precisam lidar com ele. E é preciso lidar com isso em escala global, já que os países ricos fizeram as regras para seu próprio benefício e o mundo em desenvolvimento está em clara desvantagem.

Folha Online- O sr. organizou um livro durante o período em que esteve preso com Nelson Mandela na África do Sul...

Maharaj
- Sim, editei um livro escrito por outras nove pessoas em 1976, e consegui levar os escritos sigilosamente para fora da prisão. Não somos autorizados a escrever na cadeia. Mandela escreveu sua autobiografia e eu dei um jeito de levá-la para fora, e também pedi aos outros que escrevessem artigos. Eu escrevi a introdução para os artigos.

O livro só foi publicado em 2000 ("Reflections in Prison" --Reflexões na Prisão--, editado por Maharaj e Nelson Mandela). É baseado nas opiniões de cada um dos nove, que eram todos membros do movimento anti-apartheid, sobre a situação da África do Sul.

Na introdução, eu explico como o século 20 trouxe a grande benção de difundir que a democracia é direito de todas as nações e de todas as pessoas. Cada um de nós deve ser livre para decidir seu próprio destino.

Mas, ao mesmo tempo, o século 20 trouxe marcas terríveis. Primeiro, pela forma prejudicial que lidou com a diversidade de culturas do mundo [em referência à dominação cultural de alguns países], e segundo pela tendência de resolver conflitos através da guerra. Esses dois aspectos são enormes impedimentos para o desenvolvimento de nossa sociedade.

Folha Online- Durante sua luta na África do Sul, o sr. enfrentou momentos em que pensou que fracassaria?

Maharaj
- Tivemos muita sorte lá, pois mesmo em momentos de desespero individual, sabíamos que nossa luta era justa, e o mundo todo nos apoiava. Além disso, sabíamos que éramos maioria, e que uma minoria não poderia nos dominar para sempre.

Estávamos certos de que teríamos sucesso no final. Claro, há momentos na vida de todos nós em que as dificuldades são muitas e pensamos: "Será que vou viver para ver o sucesso?". Mas tive a sorte de estar rodeado de líderes como Nelson Mandela, Walter Sisulu e Oliver Tambo. Com eles aprendemos a colocar a luta à frente de tudo, pois nosso objetivo era mais importante do que nossas vidas.

Os 12 anos em que fiquei preso e as torturas pelas quais passei foram momentos muito difíceis. Mas, olhando para trás, vejo que esses anos foram um privilégio enorme, porque vivi lado a lado com personalidades do caráter de Mandela e Sisulu. Eles foram meus mentores e amigos. Ter vivido isso e ter encontrado depois a liberdade é uma bênção.

Folha Online- O sr. ainda tem contato com Mandela?

Maharaj
- Não muito. Parece que todas as vezes que falo com ele é quando acontece algum problema... e eu quero evitar problemas [risos]. Mas ainda temos contato. Temos uma amizade que já dura mais de 40 anos, e temos muitas coisas em comum. A maior parte da geração dele já morreu, e Mandela é um dos poucos que ainda sobrevivem, então tentamos nos falar de tempos em tempos, para fazer companhia um ao outro.

Folha Online- Por muito tempo, o sr. e Mandela foram considerados criminosos pelo governo sul-africano. Em muitos países hoje ainda há movimentos criminalizados por uns e defendidos por outros. O sr. acredita que sua experiência na África do Sul ainda ocorre em outras partes do mundo?

Maharaj
- Sim. A África do Sul é uma inspiração, mas ao mesmo tempo, o mundo não anda em linha reta, anda em ziguezague, e estamos assistindo a tendência para resolução de conflitos via guerra e via imposição de poder. Nenhum país deve ter o direito de tomar decisões em nome de outra sociedade. Isso é reflexo do mundo unipolar que emergiu depois da queda do muro de Berlim. Mas o mundo está mudando e outras formas de poder estão emergindo. Acredito que as economias do sul --entre as quais o Brasil ocupa papel de destaque-- estão compreendendo que, se ficarem unidas, podem mudar as regras do jogo.

Um dos maiores exemplos de desigualdade no mundo é o Conselho de Segurança da ONU, no qual os mesmos cinco países têm direito a veto [EUA, China, Rússia, Reino Unido e França] desde o fim da Segunda Guerra Mundial, apesar das mudanças pelas quais o mundo passou. É uma relação totalmente desigual.

O comércio internacional é outra esfera onde há muitas desigualdades. Com a globalização, os países ricos exigem acesso aos mercados ao mesmo tempo em que impõe protecionismo, impedindo que tenhamos acesso aos deles. Isso impede o fluxo de capital, de trabalho, e impede o acesso igualitário à tecnologias mundiais.

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