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05/04/2007 - 02h30

A internacionalização do genocídio

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FIDEL CASTRO
no "GRANMA"

Acaba de ser encerrada a reunião de Camp David. Todos ouvimos com interesse a entrevista coletiva concedida pelos presidente dos Estados Unidos e do Brasil, bem como acompanhamos as notícias e opiniões sobre a reunião.

Diante das demandas de seu visitante brasileiros quanto às tarifas alfandegárias e subsídios que apóiam e protegem a produção norte-americana de etanol, Bush não fez a menor concessão, em Camp David.

O presidente Lula atribuiu a esse fator a alta de preços do milho, cereal que segundo ele teve aumento de mais de 85%.

Antes disso, o jornal "Washington Post" publicou um artigo do líder brasileiro no qual ele expunha a idéia de converter alimentos em combustível.

Não é minha intenção lastimar pelo Brasil, ou me imiscuir em assuntos relacionados à política interna daquele grande país. Foi exatamente no Rio de Janeiro, sede da conferência mundial do meio ambiente realizada há 15 anos, que denunciei com veemência, em discurso de sete minutos, os perigos ambientais que ameaçavam a sobrevivência de nossa espécie.

Naquela reunião, esteve presente George Bush pai, então presidente dos Estados Unidos, e ele demonstrou cortesia ao aplaudir minhas palavras, como todos os demais presidentes.

Nenhum dos presentes ao encontro de Camp David respondeu à pergunta fundamental: de que origem serão obtidas as 500 milhões de toneladas de milho e outros cereais que os Estados Unidos, a Europa e outros países ricos precisariam para produzir a quantidade de etanol que as grandes empresas norte-americanas e de outros países exigem como contraparte de seus dispendiosos investimento? Quem vai produzir a soja, a semente de girassol e a colza, cujos óleos serão convertidos por esses mesmos países ricos em combustíveis?

Diversos países produzem e exportam seus excedentes de alimentos. O equilíbrio entre exportadores e consumidores já é tenso, o que gera disparada nos preços de alguns produtos. Em benefício da brevidade, não me resta alternativa a não ser me limitar a destacar o seguinte:

Os cinco principais produtores do milho, cevada, sorgo, centeio e aveia que Bush deseja converter em matéria-prima de produção do etanol entregam anualmente 679 milhões de toneladas desses produtos ao mercado mundial, de acordo com os dados mais recentes. Por sua vez, os cinco principais consumidores desses grãos, alguns dos quais também grandes produtores, necessitam no momento de 604 milhões de toneladas desses produtos ao ano. O excedente disponível se reduz a menos de 80 milhões de toneladas.

Esse colossal desvio de cereais para a produção de combustível, sem incluir as sementes oleaginosas, serviria para fornecer aos países ricos do mundo menos de 15% do que consomem anualmente os seus vorazes automóveis.

Bush declarou em Camp David sua intenção de aplicar esta fórmula em nível mundial, o que significa nada menos que a internacionalização do genocídio.

O presidente do Brasil, em mensagem oficial publicada pelo "Washington Post" antes do encontro de Camp David, afirmou que menos de 1% da terra cultivável brasileira está em uso para a produção de cana-de-açúcar e etanol. A área em questão é quase três vezes superior ao território empregado por Cuba para a produção de quase 10 milhões de toneladas de cana-de-açúcar ao ano, antes da crise da União Soviética e das alterações climáticas.

Nosso país tem longa experiência na produção e exportação de açúcar, primeiro como base de trabalho para os escravos, que chegaram a atingir o número de mais de 300 mil nos primeiros anos do século 19 e fizeram da então colônia espanhola o maior exportador do mundo. Quase 100 anos mais tarde, no começo do século 20, na república então recentemente criada cuja independência plena frustrou a intervenção norte-americana, apenas imigrantes antilhanos e cubanos analfabetos arcavam com o fardo de cultivo e colheita da cana. A tragédia do nosso povo era o chamado tempo morto, causado pelo caráter cíclico dessa cultura.

As terras produtoras de cana-de-açúcar eram propriedades de empresas norte-americanas ou de grandes latifundiários cubanos. Por isso, acumulamos mais experiência que ninguém sobre os efeitos sociais dessa cultura.

No dia 1 de abril, a rede de TV CNN divulgou a opinião de especialistas brasileiros segundo os quais muitas das terras dedicadas ao cultivo da cana haviam sido adquiridas por norte-americanos e europeus ricos.

Em minhas reflexões publicadas em 29 de março, expliquei os efeitos das alterações climáticas sobre Cuba, aos quais devem ser acrescentadas outras características tradicionais de nosso clima.

Em nossa ilha, pobre e distante do consumismo, não haveria nem mesmo pessoal suficiente para suportar os rigores do cultivo ou manutenção dos canaviais em meio ao calor, às chuvas ou às secas cada vez mais freqüentes. Quando os ciclones nos atingem, nem mesmo as mais perfeitas máquinas são capazes de realizar a colheita dos talos de cana retorcidos, inclinados. Durante séculos, não eram usadas queimadas, e o solo não era compactado ao peso de complexas máquinas e enormes caminhões; os fertilizantes nitrogenados, fosfóricos e potássicos, hoje altamente dispendiosos, nem mesmo existiam, e os meses quentes e úmidos se alternavam regularmente. Na agricultura moderna, não existe possibilidade de rendimento elevado sem rotação regular de culturas.

A agência France Presse (AFP) veiculou no domingo informações preocupantes sobre as alterações climáticas, vistas pelos especialistas do grupo formado sob os auspícios da ONU como inevitáveis, e que responderão por graves conseqüências nas próximas décadas.

"As alterações climáticas afetarão o continente americano de maneira importante, ao gerar mais tormentas violentas e ondas da calor, as quais causarão secas na América Latina, com extinção de espécies, e também fome", de acordo com o relatório da ONU, cuja aprovação deve ser votada em Bruxelas na semana que vem.

"Ao final do século em curso, cada hemisfério sofrerá problemas de água e, se os governos não tomarem medidas urgentes, o aumento de temperatura pode elevar os ricos de mortalidade, contaminação, catástrofes naturais e enfermidades infecciosas, adverte o Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC)".

"Na América Latina, o aquecimento está derretendo as geleiras dos Andes e ameaça a selva amazônica, cujas regiões periféricas podem se converter em savanas", de acordo com o artigo da AFP.

"Devido à elevada proporção dos habitantes que vivem na proximidade das costas, os Estados Unidos também estarão expostos a fenômenos naturais extremos, como demonstrou o furacão Katrina em 2005".

"Este é o segundo de uma série de três relatórios do IPCC, divulgado em fevereiro passado e contendo o primeiro diagnóstico científico que estabeleceu as alterações climáticas como certeza".

"Neste segundo estudo, de 1,4 mil páginas, no qual as alterações são analisadas por setor e região e do qual a AFP obteve uma cópia, a conclusão é de que, ainda que se tomem medidas radicais para reduzir as emissões de dióxido de carbono na atmosfera, o aumento de temperaturas em todo o planeta está confirmado", conclui o texto da agência francesa de notícias.

Como era de esperar, Dan Fisk, assessor de segurança nacional do governo norte-americano para assuntos da região, declarou no dia da reunião de Camp David que "na discussão dos assuntos regionais, Cuba seria um deles, e não exatamente para abordar o etanol sobre o qual o presidente convalescente Fidel Castro escreveu um artigo, mas sim para discutir a fome que se abate sobre o povo cubano".

Dada a necessidade de responder a esse cavalheiro, cabe-me o dever de lembrá-lo de que o índice de mortalidade infantil em Cuba é inferior ao dos Estados Unidos. Ele pode estar seguro de que não existe cidadão algum sem assistência médica gratuita. Todos estudam, e a ninguém falta oferta de emprego útil, apesar do meio século de bloqueio econômico e da intenção dos governos norte-americanos de forçar a rendição do povo cubano por meio da fome e da asfixia econômica.

A China jamais empregaria nem apenas uma tonelada de cereais para produzir etanol. Trata-se de um país de economia próspera, que bate recordes de crescimento e no qual cidadão nenhum deixa de receber a renda necessária para os bens essenciais de consumo, ainda que 48% de seu 1,3 bilhão de habitantes trabalhem na agricultura. Pelo contrário: há uma proposta para promover economia de energia por meio do fechamento de milhares de fábricas que consomem volumes inaceitáveis de eletricidade e combustíveis. Muitos dos alimentos mencionados são importados pelos chineses das regiões mais distantes do mundo, transportados por milhares de quilômetros.

Dezenas e dezenas de países não produzem combustíveis fósseis e não têm condições de produzir milho e outros grãos ou sementes oleaginosas, porque não dispõem nem mesmo da água necessária a atender suas necessidades mais fundamentais.

Em uma reunião convocada em Buenos Aires pela Câmara da Indústria do Azeite e pelo Centro de Exportadores, sobre a produção do etanol, o holandês Loek Boonekamp, diretor de mercados e comércio agrícola da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), declarou à imprensa que "os governos se entusiasmaram muito, mas deveriam estudar com frieza se é mesmo interessante apoiar de forma tão robusta o etanol".

"A produção de etanol só é viável nos Estados Unidos; em mais nenhum país, a não ser que sejam concedidos subsídios", ele afirmou. "Não se trata de um maná dos céus e não devemos nos comprometer cegamente".

Hoje, os países desenvolvidos defendem a idéia de misturar biocombustíveis e combustíveis fósseis à razão de 5%, e isso já pressiona os preços agrícolas. Se a proporção de mistura se elevasse a 10%, 30% da superfície arável dos Estados Unidos e 50% da superfície arável européias seriam necessárias. É por isso que pergunto se isso é sustentável. O aumento da demanda pelo cultivo de etanol produzirá preços mais altos e instáveis.

O protecionismo norte-americano hoje representa tarifa de US$ 0,14 por litro, e os subsídios reais atingem montantes muito mais altos.

Aplicando a simples aritmética que aprendemos na escola, pode-se comprovar que a simples substituição das lâmpadas incandescentes por modelos fluorescentes, como afirmei em meu artigo anterior, representaria redução de investimentos e de consumo de recursos energéticos equivalente a bilhões de dólares, sem usar um só hectare de terra agrícola.
Enquanto isso, notícias de Washington afirmam textualmente o seguinte, de acordo com a agência de notícias AP:

"O misterioso desaparecimento de milhões de abelhas nos Estados Unidos está deixando os apicultores do país inquietos, e começa a causar preocupação no Congresso, que debaterá esta semana a situação crítica de um inseto essencial para o setor agrícola".

"Os primeiros sinais sérios desse enigma surgiram pouco depois do Natal, no Estado da Flórida, quando alguns apicultores descobriram que suas abelhas haviam desaparecido".

"Desde então, a síndrome que os especialistas designaram como síndrome do colapso de colônias (CCD, na sigla em inglês), reduziu em 25% os enxames do país".

"Perdemos mais de meio milhão de colônias, cada qual com população média de 50 mil abelhas", disse Daniel Weaver, presidente da Federação Norte-Americana de Apicultores, segundo o qual o problema atinge 30 dos 50 Estados do país. O aspecto mais curioso do fenômeno é que, em muitos casos, não foram encontrados restos mortais.

"Os laboriosos insetos polinizam plantações avaliadas em entre US$ 12 bilhões e US$ 14 bilhões, de acordo com um estudo da Universidade Cornell".

"Os cientistas aventaram toda espécie de hipótese, entre elas a de que algum pesticida tenha provocado danos neurológicos nas abelhas e alterado seu senso de orientação. Outros atribuem a culpa à seca, ou às ondas emitidas por celulares, mas o certo é que ninguém conhece a explicação científica exata".

O pior pode estar por vir: uma nova guerra para garantir o abastecimento de gás e petróleo que colocará a espécie humana à beira do holocausto total.

Há órgãos de imprensa russos que, invocando fontes nos serviços de informações, informam que a guerra contra o Irã vem sendo preparada em todos os detalhes há mais de três anos, desde o dia em que os Estados Unidos decidiram ocupar totalmente o Iraque, desencadeando uma interminável e odiosa guerra civil.

Enquanto isso, o governo norte-americano destina centenas de bilhões ao desenvolvimento de armas de tecnologia altamente sofisticada, como as que empregam sistemas microeletrônicos, ou novas armas nucleares que poderiam atingir seus objetivos uma hora depois de recebida a ordem.

Os Estados Unidos ignoram olimpicamente o fato de que a opinião mundial se opõe a toda espécie de arma nuclear.

Demolir até a última fábrica iraniana é tarefa técnica relativamente fácil para um poderio como o norte-americano. O difícil pode vir mais tarde, se surgir uma nova guerra contra a fé islâmica, que merece todo o nosso respeito, como as demais religiões dos povos do Oriente Próximo ou distante, anteriores ou posteriores ao cristianismo.

A detenção de soldados ingleses em águas territoriais do Irã parece provocação semelhante à dos chamados "Irmãos de Resgate", os quais, desafiando ordens do presidente Clinton, invadiam nossas águas territoriais; a ação defensiva de Cuba, absolutamente legítima, serviu de pretexto ao governo norte-americano para promulgar a famosa lei Helms-Burton, que viola a soberania de outros países. O uso intenso de publicidade nas mídias causou o esquecimento quanto àquele episódio. Não são poucos os que atribuem o preço de US$ 70 por barril que o petróleo atingiu na segunda-feira ao medo de um ataque ao Irã.
De onde os países pobres do Terceiro Mundo extrairão os recursos mínimos para sobreviver?

Não exagero nem uso palavras insensatas, me atenho aos fatos.

Como vocês podem ver, são muitas as faces obscuras do poliedro.

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI
 

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