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11/03/2001 - 08h34

Escritor defende processo contra Kissinger

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MÁRCIO SENNE DE MORAES
da Folha de S.Paulo

Se o ex-ditador chileno Augusto Pinochet pôde ser indiciado na Espanha e detido em Londres, capital do Reino Unido, sob acusação de tortura e de outros crimes contra a humanidade cometidos durante sua vida pública, então por que o ex-secretário de Estado dos EUA e Prêmio Nobel da Paz Henry Kissinger deveria sentir-se seguro ao viajar para o exterior?

Para o escritor Christopher Hitchens, desafeto confesso de Kissinger, ele não deveria colocar-se acima das leis internacionais. A prisão de Pinochet, em outubro de 1998, simbolizou o advento de uma nova era, de acordo com Hitchens: uma época em que os chefes de Estado e de governo são responsáveis por atos cometidos durante sua administração e devem responder por eles em cortes internacionais.

Em seu ensaio "O Caso contra Henry Kissinger", publicado na revista "Harper's", o autor britânico argumenta que Kissinger foi responsável por crimes diversos durante a Guerra do Vietnã, a queda do regime de Salvador Allende no Chile, a invasão de Chipre pelo governo turco, a invasão de Timor Leste pelo regime indonésio do ex-ditador Suharto e o golpe de Estado que instaurou o terror em Bangladesh.

"O trabalho de Hitchens é útil para a cena política de hoje, pois demonstra que, no contexto atual, crimes contra a humanidade, cometidos direta ou indiretamente, são denunciados. Além disso, ele contribui para a campanha de criação de um tribunal penal internacional", afirmou à Folha de S.Paulo Charles Tilly, professor da Universidade Columbia e autor de, entre outros, "From Contention to Democracy" (Da contenção à democracia).

Segundo Hitchens, a equipe de campanha do republicano Richard Nixon _da qual Kissinger fazia parte_ minou a possibilidade de um acordo de paz entre o Vietnã do Sul e o Vietnã do Norte durante negociações ocorridas em Paris, em 1968, ao garantir aos líderes militares sulistas que uma futura administração do Partido Republicano nos EUA lhes proporia um acordo de paz mais vantajoso do que o então governo democrata de Lyndon Johnson.

Com o fim das negociações de paz, centenas de milhares de inocentes foram mortos até o fim da guerra, em 1975. Para Hitchens, Kissinger e Nixon sabiam mais tarde que a guerra estava perdida para os EUA, entretanto deram continuidade a ela para assegurar a reeleição de Nixon.

O escritor também afirma que os bombardeios contra o Laos e o Camboja (entre março de 1969 e maio de 1970), que Nixon e Kissinger esconderam do Congresso dos EUA, violaram a Carta da Organização das Nações Unidas e os princípios de Nuremberg (de direito internacional).

"O uso de violência no Camboja e no Laos foi vergonhoso para os EUA e ilegítimo, mesmo se levarmos em consideração o contexto da época. É verdade que havia a Guerra Fria, porém a morte de civis inocentes não pode ser desculpada", explicou Tilly.

No Chile, em 1970, num esforço para "impressionar o patrão" (Nixon) e desestabilizar o governo de Allende, Kissinger autorizou o assassinato do general constitucionalista Rene Schneider, ainda segundo Hitchens. Ele diz que os serviços de inteligência dos EUA enviaram metralhadoras a Santiago em malotes diplomáticos e deram dinheiro aos assassinos.

"A revelação de que os EUA estiveram envolvidos no golpe de Estado no Chile (1973) não constitui uma novidade, mas é sempre útil que isso seja lembrado", declarou à Folha de S.Paulo Richard A. Falk, doutor em direito internacional e professor de Princeton.

Em 1974, em resposta ao golpe de Estado que depôs o presidente Makarios, o governo turco invadiu Chipre. A ação causou o "desaparecimento" de cerca de 1.500 cipriotas de origem grega e acirrou o conflito geopolítico entre Ancara e Atenas. Para Hitchens, o então secretário de Estado, Henry Kissinger, deu a aprovação norte-americana à Turquia, país que era um importante aliado e cliente dos EUA, e implicou-se em crimes contra a humanidade.

Em 1975, o governo indonésio invadiu e anexou Timor Leste, então independente e soberano, e matou quase 200 mil timorenses (perto de um terço da população do país). Kissinger e o então presidente dos EUA, Gerald Ford, apoiaram as atividades das tropas do ex-ditador Suharto, que recebeu ajuda econômica e militar de Washington. Esse apoio, argumenta Hitchens, transformou Kissinger em cúmplice de crimes contra a humanidade.

O escritor britânico defende a mesma tese em relação a Bangladesh, onde, em 1971, o Exército do Paquistão organizou um golpe de Estado e lançou uma campanha de terror contra a população civil. Dezenas de milhares de pessoas morreram e milhões de refugiados foram obrigados a escapar para a Índia. Não fazendo nada para impedir a tragédia apesar de saber que ela era iminente, Kissinger e Nixon ter-se-iam envolvido em crimes contra a humanidade mais uma vez.

Indubitavelmente, os argumentos de Hitchens são fortes, e seu trabalho é minuciosamente documentado, porém as chances de o ex-secretário de Estado dos EUA enfrentar um processo por crimes contra a humanidade são ínfimas. Afinal, além do papel importante que desempenhou durante sua vida pública, Kissinger é uma das maiores autoridades acadêmicas em relações internacionais e um dos expoentes da escola realista.

"No que concerne aos EUA, será muito difícil que Kissinger seja julgado por esses crimes. Contudo, se observarmos o que aconteceu com Pinochet, ele poderá ser detido em qualquer país que o tiver indiciado ou que tiver acordo de extradição com esse país", afirmou Falk, que escreveu vários livros sobre Justiça internacional, incluindo "Human Rights and State Sovereignty" (Direitos humanos e soberania do Estado).

"Por outro lado, se permanecer nos EUA, ele não correrá perigo, pois Washington se recusará a extraditá-lo. Não sei se o mundo já está pronto para ter a chamada jurisdição universal sobre crimes de Estado. É fácil indiciar um líder desacreditado, como Pinochet ou o ex-ditador iugoslavo Slobodan Milosevic, no entanto a situação é mais complexa quando se trata de um ex-líder geopolítico mundial, como Kissinger. O realismo político permanece bastante forte na cena internacional, e a contribuição de Kissinger para ele foi enorme", acrescentou.

O argumento em defesa do ex-secretário de Estado é simples: razão de Estado. Ou seja, no contexto bipolar da Guerra Fria, tais ações eram "necessárias" para evitar a propagação do comunismo, que "ameaçava" a democracia norte-americana.

Entretanto poucos analistas acreditam que esse argumento seja legítimo. "Políticas que foram responsáveis por tanto sofrimento e aceitaram as mais graves violações aos direitos humanos, como genocídios, devem sempre ser condenadas. Afinal, tais crimes não prescrevem", analisou Tilly.

Há dois aspectos cruciais nesse caso: a fundamentação jurídico-moral e o contexto político. No que diz respeito ao primeiro aspecto, não há dúvida de que há base jurídica e moral para que Kissinger seja processado. Contudo, no que concerne ao segundo, a questão é bem mais delicada, já que a maior potência mundial se oporia à realização de tal processo, como afirmou Falk.

Mesmo que um tribunal penal internacional já existisse e estivesse operando sob o comando da Organização das Nações Unidas, o julgamento de Kissinger continuaria sendo pouco provável.

Afinal, o indiciamento de quem quer que seja dependeria do Conselho de Segurança da ONU, no qual os EUA têm direito de veto. Isso significa que, mesmo que os procedimentos para indiciá-lo fossem iniciados, eles poderiam ser e certamente seriam bloqueados pelos norte-americanos. Os EUA, a França, o Reino Unido, a China e a Rússia têm esse direito no Conselho de Segurança.

Para Falk, seria necessária uma reforma do estatuto da ONU para que esse processo ocorresse. "Os EUA bloqueariam qualquer iniciativa que visasse a colocar em situação embaraçosa algum de seus líderes. O sistema da ONU foi concebido no pós-guerra e guarda resíduos da Guerra Fria, na qual Kissinger foi uma figura de ponta. O sistema da ONU terá, portanto, de ser reformado para permitir a criação de uma verdadeira Justiça internacional", disse.

 

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