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24/06/2001 - 09h02

Antiamericanismo ganha força no mundo

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MÁRCIO SENNE DE MORAES
da Folha de S.Paulo

Sul-americanos protestam contra o Plano Colômbia, visto como uma forma de ingerência caracterizada pela crescente presença militar americana no país.

Palestinos queimam a bandeira dos EUA em Gaza ou na Cisjordânia para expressar seu descontentamento em relação à atuação de Washington no processo de paz -para eles, pró-Israel.

Sul-coreanos apedrejam um boneco do presidente George W. Bush e também ateiam fogo à bandeira dos EUA, em Seul, em protesto contra a sua intenção de construir um sistema de defesa antimísseis.

Ameaças de ataques terroristas pairam sobre militares americanos, que foram colocados em estado de alerta máximo anteontem no golfo Pérsico.

A constatação parece evidente: ganha vigor uma nova onda de antiamericanismo no mundo. No entanto ela pode ser enganosa, pois há o risco de confundir as manifestações antiglobalização com um real sentimento antiamericano. Além disso, uma diferenciação entre o que ocorre na esfera política e os anseios da sociedade civil também se faz necessária.

"O recorrente antiamericanismo europeu se manifesta dentro da sociedade civil. Os Estados apenas participam do jogo diplomático com mais ou menos independência", explicou à Folha o renomado pensador e linguista americano Noam Chomsky, pesquisador no MIT -Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

Indubitavelmente, há o uso político de um sentimento mais ou menos ancorado na sociedade civil. "Há uma tradição política de opor-se aos EUA -particularmente na França, mas existente em vários outros países", sugeriu o sociólogo Eric Fassin, da Escola Normal Superior, de Paris.

"Desde o general Charles de Gaulle [nos anos 60", o antiamericanismo diplomático corresponde a uma estratégia de resistência à hegemonia dos EUA. Geralmente, essa tradição encontra apoio na sociedade civil, como no caso da proteção ambiental. Assim, os políticos utilizam os sentimentos populares para sustentar suas estratégias", acrescentou.

Quatro fontes

Na verdade, o sentimento atual advém de quatro fatores principais e, como salientou Guy Groux, diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica -da França- e especialista em movimentos populares, "não tem nada em comum com o antiamericanismo que existiu nas décadas de 70 e 80 em razão da Guerra do Vietnã e da instalação de mísseis Pershing americanos na Europa".

Primeiro, há o movimento antiglobalização, cujos alvos são não apenas os EUA mas também a União Européia, como vimos recentemente durante a cúpula européia acontecida em Gotemburgo, na Suécia. Os EUA são o país mais atacado por esse movimento porque existe a percepção, fundamentada, de que suas empresas alimentam a globalização e tiram mais lucros dela do que as corporações de outros países.

"Esse movimento é uma forma de opor-se às estruturas do sistema internacional atual. Já que há uma sociedade civil internacional com objetivos difusos e mais ou menos similares, porém não existe um "Estado internacional", os manifestantes concentram seus protestos nas duas grandes potências do mundo capitalista: os EUA e a UE -em menor escala", analisou Yves Schemeil, cientista político do Instituto de Estudos Políticos de Grenoble (França).

Pena de morte

Para ele, o segundo fator é um sentimento intrinsecamente antiamericano, que não é novo, mas que ganhou novo alento recentemente, mesmo entre pessoas em princípio favoráveis aos EUA, por causa de certos aspectos do sistema político-social americano.

"Para os europeus, por exemplo, que estão habituados a relações sociais mais amistosas e a uma visão mais humanista do mundo, a questão da pena de morte e o retorno a uma visão reacionária das questões sociais com a chegada de Bush ao poder fazem com que os americanos se tornem mais distantes", disse Schemeil.

Terceiro, a modernidade científica e tecnológica, tão decantada atualmente e encarnada pelos EUA, tem consequências cruciais para o resto do planeta e sustenta o sentimento antiamericano. A recusa de Bush em respeitar o Protocolo de Kyoto (que estabelece metas para o combate do efeito estufa) se insere nessa lógica.

Afinal, para criar modernidade e ampliar a produção de bens, os EUA também produzem os efeitos indesejáveis da modernidade, contudo não querem pagar nada por isso nem contribuir para a sua diminuição. Do Canadá à Austrália, Bush tem enfrentado protestos contra a sua decisão.

O quarto fator diz respeito à impressão, existente na maior parte do planeta, de que tudo o que transforma as sociedades tem origem nos EUA. "Direitos humanos, dos homossexuais e dos não-fumantes, assédio sexual ou moral e a "juridização" generalizada das sociedades civis são bons exemplos", apontou Schemeil.

"Em muitos lugares do mundo, como nos países árabes, as pessoas sentem-se invadidas por essas tendências. E, nesse sentido, a percepção de que os americanos são responsáveis por tudo isso é muito importante, pois, algumas vezes, esses fenômenos nem têm origem nos EUA", acrescentou.

Tato diplomático

Além disso, a falta de tato diplomático de Bush agrava o quadro. Em Varsóvia, há pouco mais de uma semana, ele expôs sua visão do que deve ser a UE, atraindo a ira dos movimentos antiamericanos: um tipo de prolongamento político e econômico da Otan (aliança militar ocidental, controlada por Washington).

Segundo ele, a expansão da Otan deve ocorrer antes que a UE admita novos membros, para que a união possa transformar-se numa imensa zona de livre comércio englobando quase todos os países do continente europeu.

Em artigo na revista "The National Interest", o analista político alemão Josef Joffe avançou a tese de que, embora o antiamericanismo tenha ganhado vigor, não há uma aliança contra os EUA porque o "soft power" americano (sua influência cultural e ideológica sobre o resto do planeta) continua predominante. Assim, a atração que exercem os EUA sobre os outros países seria mais forte que o antagonismo que ela produz.

É verdade que qualquer ação de um Estado como os EUA, a última grande potência mundial, não pode passar despercebida na cena internacional. Se os americanos intervêm, são hegemônicos e não têm noção do conceito de multipolaridade. Se não o fazem, são tachados de insulares e isolacionistas por seus críticos.

Contudo uma visão mais humanista e menos egocêntrica das relações internacionais por parte de Washington poderia abrandar o ainda desorganizado movimento antiamericano. Em vez de um escudo antimísseis, Bush deveria propor a criação de um sistema de defesa internacional para enfrentar as hoje difusas ameaças geoestratégicas e apoiar a criação de um tribunal penal internacional.

Em vez de proteger as patentes da indústria farmacêutica dos EUA, ele deveria apoiar a luta contra o avanço da Aids na África. Assim, talvez o resto do mundo deixasse de se sentir subestimado pela potência americana.




 

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