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02/09/2001 - 09h15

Valor dos megaencontros é questionado

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MÁRCIO SENNE DE MORAES
da Folha de S.Paulo

A 3ª Conferência da ONU contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância Correlata começou anteontem em Durban, na África do Sul, sob o signo da discórdia e assombrada pelo espectro de transformar-se num fracasso em razão de uma eventual falta de resultados concretos.

Em todo o planeta, cresce a impressão de que as megaconferências organizadas pelas Nações Unidas não se traduzem em ações concretas para combater os problemas que elas visam a tratar.

Especialistas no sistema da ONU divergem quanto a essa afirmação. Contudo a maioria deles concorda no que se refere ao efeito da publicidade gerada pelos megaencontros. Para esse grupo, o simples fato de que temas quase esquecidos -embora cruciais- sejam tratados pelo maior fórum da comunidade internacional já é bastante positivo.

Na verdade, as megaconferências podem ter dois principais efeitos visíveis. Primeiro, a publicidade criada em torno de assuntos pouco discutidos na esfera global. Segundo, elas podem produzir textos legais específicos, planos de ação com cronogramas detalhados ou, até mesmo, tratados, como o Protocolo de Kyoto (que estabelece metas para o combate do efeito estufa).

"A conferência de Durban opera quase exclusivamente no primeiro plano, o da publicidade. Isso não significa que ela seja totalmente irrelevante. Entretanto, geralmente, esse primeiro plano não tem efeitos específicos sobre o comportamento das pessoas ou dos governos que sejam fáceis de identificar", explicou à Folha David G. Victor, autor de "The Implementation and Effectiveness of International Environmental Commitments: Theory and Practice" (a implementação e a eficácia de compromissos ambientais internacionais: teoria e prática).

Para Joan Veon, autora de "United Nations Global Strait Jacket" (camisa-de-força global da ONU), por outro lado, só o efeito da publicidade já é extraordinário. Além disso, ela ressalta que, para uma verdadeira compreensão do sistema da ONU, é necessário ler atentamente os artigos de cada documento oficial divulgado ao final das reuniões.

"Nenhuma megaconferência da ONU fracassou. Elas foram sucessos espetaculares, pois serviram para dar continuidade à construção de uma estrutura governamental global de controle", disse.

"Quando agrupei os itens da 4ª Conferência Mundial da Mulher [Pequim -1995", por exemplo, percebi que havia mais detalhes sobre um sistema de governo global do que sobre as mulheres. Esses itens são relacionados à soberania dos Estados, à economia, ao poder da ONU, à Justiça internacional etc.", acrescentou Veon, que cobriu 43 encontros internacionais como jornalista.

Sistema mundial
Ted Galen Carpenter, editor de "Delusions of Grandeur: The United Nations and Global Intervention" (delírios de grandeza: a ONU e intervenção global), no entanto, acredita que a ONU não possa ter a veleidade de transformar-se num governo global, pois, segundo ele, o planeta ainda não está preparado para isso.

"Quando observamos o sistema mundial e percebemos que uma porcentagem altíssima dos países que o compõem ainda não têm governos democráticos, só podemos concluir que o planeta ainda não tem condições de pensar num governo supranacional", analisou Carpenter.

A União Européia (UE) e suas instituições tendem a tornar-se as esferas mais próximas a um quadro ideal de administração supranacional apesar de ainda terem um longo caminho a percorrer antes de se consolidarem, de acordo com Michael Kreile, diretor do departamento de política internacional da Universidade Humboldt, de Berlim.

"O projeto da paz perpétua de [Emmanuel" Kant [1795", com uma federação de Estados soberanos, pacíficos e com forte comércio entre si, ainda não existe na Europa, entretanto o continente está aperfeiçoando suas instituições, intensificando as relações comerciais internas e, inadvertidamente, aproximando-se do projeto de Kant", apontou Kreile, que é especialista em questões ligadas ao sistema da ONU.

"A Convenção Européia de Direitos Humanos é um exemplo de texto que funciona, pois ela é resguardada pela Corte Européia de Direitos Humanos. Assim, os cidadãos europeus têm um local específico ao qual podem levar suas queixas contra países-membros. Alguns Estados já foram até condenados e, consequentemente, forçados a corrigir seus erros."

Resultados concretos
Segundo Victor, não se pode afirmar que as megaconferências jamais tenham produzido resultados concretos, embora eles nem sempre sejam claros. "A Conferência sobre o Ambiente ocorrida em Estocolmo, em 1972, serviu para colocar na pauta internacional um assunto que, à época, praticamente não existia, além de dar origem ao Programa da ONU para o Ambiente, que é bastante eficaz, como prova a existência do Protocolo de Kyoto."

"Todas as conferências sobre a população e o desenvolvimento, como a realizada no Cairo em 1994, obrigaram a sociedade civil internacional e os governos a refletir sobre o crescimento desenfreado das populações, sobre métodos de controle desse crescimento etc.", acrescentou.

Porém mesmo os mais aguerridos defensores da ONU, como Veon, admitem que as ações concretas geradas por megaencontros dependem da política interna dos membros da organização. "Há uma configuração política que faz com que os governos utilizem manobras para obter posições melhores", apontou Veon.

Para os menos otimistas, as decisões tomadas em instâncias internacionais dependem diretamente da situação política interna dos países mais abastados. "Kyoto é um caso típico. O poderoso lobby das indústrias não permite que o governo americano, que deve muito ao apoio que recebeu do setor industrial durante a campanha presidencial do ano passado, assine o protocolo", disse Kreile.

A ausência de delegações de peso dos EUA e de Israel em Durban mostra que fatores internos realmente desempenham um papel crucial. Afinal, a exigência de países árabes de associar Israel ao racismo foi mal recebida por setores influentes das sociedades americana e israelense.

Perdão da dívida
"Temo que, de concreto, fique apenas acertado o perdão da dívida externa de países pobres, sobretudo africanos. Isso porque eles usaram a questão da reparação financeira pela escravidão como desculpa para obter esse perdão, o que, a propósito, acaba aplacando a consciência dos países ricos", analisou Kreile.

Para Carpenter, a ONU realiza missões "relativamente úteis" apenas no que diz respeito à resolução de conflitos, "quando as partes envolvidas já buscam voluntariamente pôr fim a seus problemas". Ele reconhece, entretanto, que a organização é um fórum global no qual diferentes idéias podem ser expressas.

Victor ressaltou outro ponto que pode prejudicar a reunião de Durban: a chamada "fadiga de megaconferências". "Elas são muitas e tentam cobrir temas demais. As pessoas estão começando a ficar cansadas de tantos encontros internacionais."

Além disso, o corpo diplomático de países menos abastados não é suficientemente numeroso para que eles possam preparar-se adequadamente para os megaencontros das Nações Unidas.

"Um pequeno país africano, por exemplo, mal tem diplomatas para ser corretamente representado na Assembléia Geral da ONU, em Nova York. Assim, é claro que, não podendo preparar-se apropriadamente, os Estados mais pobres não têm o mesmo peso que os países mais desenvolvidos, cujo corpo diplomático é imenso", afirmou Kreile.


Leia mais no especial sobre a conferência da ONU
 

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