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16/09/2001 - 03h36

Análise: É um novo admirável mundo novo

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TIMOTHY GARTON ASH
especial para a Folha

Onde você estava quando ouviu a notícia de que Kennedy fora baleado? De que o Muro de Berlim fora derrubado? E, agora, no momento em que o World Trade Center estava sendo atacado?

Foi um desses momentos definidores de experiência e emoção mundiais, compartilhadas pela TV. Mas a grande questão é: que tipo de evento mundial o ataque será? Será parecido com o assassinato de Kennedy -chocante, inesquecível, mas pouco importante para o curso da história? Ou será mais parecido com a queda do muro, um evento que muda o curso da história e cujas consequências continuarão a ser sentidas ao longo de muitas décadas e por todos os continentes?

Meu palpite é de que o ataque do último dia 11 será algo entre esses dois eventos, mas mais próximo do segundo, por duas razões. Primeiro, porque era uma catástrofe anunciada. Já há anos, especialistas em segurança vinham alertando de que, depois do final da Guerra Fria, a principal ameaça à segurança de nossas prósperas democracias capitalistas poderia vir de ataques terroristas.

A maior parte das pessoas não acreditava muito nisso. Sim, houve horríveis atentados a bomba, mas não havia um momento definidor: um bloqueio berlinense ou uma crise dos mísseis cubanos "new age" para gravá-los nas mentes de todos. Bem, aí está: imagens da paisagem urbana mais famosa do mundo, envolta em fumaça e absolutamente transformada.
Assim, longe de ser um acontecimento extraordinário, excepcional, o ataque foi a realização, da pior forma possível, de tendências mais profundas, já mapeadas e previstas.

Segundo, suspeito que o ataque mudará o curso da história porque o que acontece no mundo no começo do século 21 depende, mais do que nunca, da conduta de um único país, os EUA, e esse ataque provavelmente terá um impacto incalculável sobre a psicologia desse país. Tanto da grande e, em larga medida, benigna continuidade da política externa norte-americana desde 1945 dependia de o mundo exterior não afetar diretamente as vidas da maioria dos norte-americanos.

Quem quer que tenha vivido por algum tempo nos EUA sabe o que quero dizer. As pessoas se queixam nos bares de pequenas cidades sobre as alianças estrangeiras obscuras. Congressistas e articulistas de Washington fizeram ameaçadores ruídos de isolacionismo ou retaliação.
Mas a maior parte das pessoas não se incomodava muito com o que acontecia no resto do mundo. Com base nessa sólida fundação, de profunda indiferença popular, foram erguidas por arquitetos de elite as imensas torres de aço da política externa norte-americana.

Com o mais significativo ataque externo ao território desde que as forças britânicas incendiaram Washington em 1814, essa fundação paradoxalmente sólida será abalada. Pode parecer estranho temer o momento em que pessoas comuns começarão a se importar com o mundo exterior, mas é provável que nos vejamos sonhando nostalgicamente com a velha e contida indiferença que tantas vezes irritou estrangeiros.

Há muitas coisas que a opinião pública impediu os líderes norte-americanos de fazer no mundo. Desde o Vietnã, existe uma fobia quanto a arriscar as vidas de soldados norte-americanos, por medo de que só seus corpos voltem ao país. Daí o bombardeio a Kosovo da segura altitude de 5.000 metros. Mas havia muito poucas coisas que a opinião pública ativamente compelisse os líderes a realizar em política externa. O horror em Manhattan parece ter mudado essa atitude. Subitamente, irrompe um grito de gargantas meio sufocadas com a poeira e os destroços e de milhões de pessoas no resto dos EUA: "Vingança!". Peguem os bastardos que realizaram esse ataque, de preferência com armas inteligentes e sem baixas, é claro, mas se isso não for possível, se alguns corpos tiverem de voltar ao país dentro de sacos plásticos, que seja. Assim, o que acontecerá no mundo após o 11 de setembro? Eis aqui três cenários:

Cenário 1
Os EUA começam a se comportar mais como Israel. Sentindo-se ameaçado e sob assédio, mas crente em seu destino manifesto, o país ataca com seu arsenal de alta tecnologia quem quer que aparente a menor intenção de agredi-lo. Qualquer ataque terrorista resulta em retaliação imediata, sem esperar por provas. Olho por olho, dente por dente, e não importa exatamente a quem pertençam olhos e dentes. É esse o curso de ação que o ex-primeiro ministro israelense Ehud Barak insta os EUA a adotar. Os EUA, diz ele, deveriam entrar em guerra contra todos os terroristas conhecidos.

Não se deve jamais subestimar a influência não exatamente de Israel, mas do "exemplo" de Israel, sobre a direta republicana nos EUA. Nos anos 80, havia curiosas, mas fortes conexões entre a ferocidade que Israel exibia no Líbano e a dureza do governo Reagan na América Central. Obcecados com a sua própria defesa, os EUA também se tornariam ainda menos interessados em missões de paz em outros locais do mundo. Com Manhattan sob ataque, quem se importa com a Macedônia?

Muitas das reações iniciais em Washington parecem apontar nessa direção. O secretário de Estado, Colin Powell, diz que, qualquer que seja a posição legal, a maior parte dos cidadãos sente que seu país está em guerra, e é assim que ele também se sente.

Todos falam em Pearl Harbor, e de retaliação certeira e imediata. Contra quem? "Não tenho dúvida nenhuma de que o responsável foi Osama bin Laden", diz o senador John Kerry. Agora, o milionário terrorista saudita está sob a proteção do Taleban, no Afeganistão. E o presidente Bush diz: "Não distinguiremos entre os terroristas que cometeram esses atos e aqueles que os abrigam." Portanto, bombas sobre o Afeganistão, os inocentes morrem junto com os culpados e mais ondas de ódio se dirigirão aos EUA vindas de partes do mundo árabe e islâmico. Os EUA como um Israel maior.

Cenário 2
O Ocidente contra o resto. Com a declaração da Otan de que o ataque contra os EUA constitui ataque a todos os membros da aliança, invocando o artigo 5º do tratado pela primeira vez na história, o governo Bush adota abordagem mais ponderada. Em lugar de vingança unilateral, uma estratégia que envolva os aliados é criada. Mas a coalizão não vai muito além dos aliados da Otan e alguns poucos amigos tradicionais do Ocidente. Esse bloco ocidental ampliado passa a viver sob assédio. O Reino Unido se encontra na linha de frente. Por anos, será travada uma batalha contra as forças diversificadas e mutantes do terrorismo. Os terroristas encontrarão abrigo em Estados que podemos descrever como "irresponsáveis", mas que se vêem como irmãos no Islã, irmãos no anti-sionismo ou simplesmente irmãos no grande alinhamento dos pobres contra os ricos. Esses Estados, por sua vez, serão apoiados tacitamente por potências maiores, como a China, que buscam aliados ou clientes para o seu jogo mundial.

Cenário 3
As Nações Unidas contra os terroristas. Exibindo a paciência e a reserva que ele demonstrou na crise gerada pelo incidente com o avião espião norte-americano derrubado na China este ano, o presidente Bush espera o tempo necessário para estabelecer com razoável certeza os verdadeiros responsáveis pelos ataques.

As represálias armadas diretas dos norte-americanos se limitam a eles. Ao mesmo tempo, ele trabalha com e por intermédio das Nações Unidas para estabelecer uma coalizão de ação contra o terrorismo que se estenda para além do Ocidente. Em especial, ela inclui Rússia e China. Há momentos em que a impressão é de que o governo Bush vê o mundo entrando em uma nova versão da Guerra Fria, com a China no papel da União Soviética. Mas não foi a China que atacou o coração dos Estados Unidos.

Uma ação internacional tão penosamente coordenada pode ser menos eficiente na contenção de terroristas específicos a curto prazo, mas seu efeito de longo prazo será unir países díspares com a mais poderosa cola: um inimigo comum. Em lugar do "Confronto de Civilizações", de Samuel Huntington, teremos a defesa da civilização, no singular. E os alicerces da civilização incluem os direitos humanos de todos e as leis internacionais aplicadas a todos.

Esses três cenários começam com a resposta imediata àquilo que o presidente Bush acuradamente descreveu como "homicídio em massa". Mas as implicações vão muito além. Desde que George W. Bush foi eleito, temos especulado até que ponto ele está preparado para levar os EUA a agirem sozinhos. Agora, nas circunstâncias mais extremas, é que descobriremos.
Pode parecer loucura sugerir que a maneira pela qual os EUA respondem a um único ataque terrorista, por maior e mais horripilante que tenha sido, dará forma a todo o sistema internacional. Mas isso pode ainda ser verdade. Se a queda do Muro de Berlim representou o verdadeiro final do breve século 20, temos bons argumentos para dizer que a demolição do World Trade Center é o verdadeiro início do século 21. Bem-vindos a um outro admirável mundo novo.

  • Timothy Garton Ash é historiador, professor nas universidades Stanford e de Oxford, e autor de "Nós, o Povo"
    Tradução de Paulo Migliacci

    Leia mais no especial sobre atentados nos EUA
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