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05/10/2001 - 04h48

Análise: Árabes precisam de nova política secular

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EDWARD SAID

Para os 7 milhões de norte-americanos que são muçulmanos (apenas 2 milhões dos quais são árabes) e que viveram a catástrofe de 11 de setembro e suas duras consequências, estes vêm sendo tempos inquietantes e particularmente desagradáveis.

Além do fato de vários árabes e muçulmanos terem sido transformados em vítimas inocentes de atrocidades, criou-se um clima quase palpável de ódio contra esse grupo, ódio que se manifesta sob diversas formas.
George W. Bush imediatamente alinhou Deus com os EUA e declarou guerra aos "sujeitos" -que ele agora afirma querer vivos ou mortos- que perpetraram esses atos terríveis.

Como todos já sabem, isso significa que Osama bin Laden, o esquivo fanático muçulmano que, para a imensa maioria dos americanos, passou a representar o próprio islã, passou a ocupar o centro do cenário nacional. A TV e o rádio divulgam quase incessantemente fotos de arquivo e informações enlatadas sobre o tétrico extremista (que, segundo dizem, seria um antigo playboy) e também sobre as mulheres e as crianças palestinas surpreendidas quando "comemoravam" a tragédia.

Personalidades públicas e apresentadores de televisão falam sem parar em "nossa" guerra contra o islã, e palavras como "jihad" e "terror" vêm intensificar o medo e a raiva compreensíveis que já parecem ter se estendido por todo o país. Duas pessoas (uma delas um sikh) foram mortas por cidadãos enfurecidos, ao que parece movidos por comentários como os do funcionário do Departamento de Defesa Paul Wolfowitz, que já aventou idéias como, literalmente, "acabar com os países" e atacar nossos inimigos com armas nucleares.

Comerciantes, mulheres usando lenços na cabeça e cidadãos comuns árabes e muçulmanos já foram insultados, e por toda parte surgem cartazes e faixas pregando sua morte iminente. O diretor da mais importante organização árabe-americana me disse que vem recebendo em média dez mensagens por hora contendo ameaças e ataques verbais capazes de fazer o sangue gelar nas veias. Uma sondagem do Instituto Gallup, divulgada em 24 de setembro, revelou que 49% dos americanos disseram "sim" (e 49%, "não") à idéia de que os árabes, incluindo os cidadãos americanos de origem árabe, devem andar com uma identificação especial; 58% exigem que os árabes, incluindo os cidadãos americanos de origem árabe, sejam submetidos a controles de segurança especiais (41% são contra a proposta).

Mas o espírito belicoso oficial começou a diminuir lentamente desde que Bush descobriu que seus aliados não são tão pouco comedidos quanto ele e, sem dúvida, na medida em que alguns de seus conselheiros lhe vêm mostrando que invadir o Afeganistão não é tão simples quanto enviar os grupos paramilitares do Texas.

Também começou a diminuir quando a realidade extremamente confusa que Bush e seus assessores se viram obrigados a aceitar passou a tornar menos nítida a estúpida imagem maniqueísta do bem contra o mal que o presidente vinha difundindo, em nome de sua população. Apesar de não pararem de chegar informações sobre o assédio movido pela polícia e o FBI contra muçulmanos, começa a ocorrer um retrocesso perceptível na escalada. Bush visita uma mesquita em Washington; lança um apelo aos líderes da comunidade e ao Congresso para que se moderem os discursos de ódio; começa a pelo menos tentar traçar distinções retóricas entre "nossos" amigos árabes e muçulmanos (os de sempre: Jordânia, Egito e Arábia Saudita) e os terroristas ainda não descobertos.

Em seu discurso diante da sessão plenária do Congresso, Bush disse que os EUA não estão em guerra contra o islã, mas, infelizmente, não disse nada sobre a crescente onda que vem atingindo, em todo o país, muçulmanos, árabes e pessoas cuja aparência pode indicar que venham do Oriente Médio. De vez em quando Powell manifesta seu desagrado com Israel, por aproveitar-se da crise para oprimir os palestinos ainda mais, mas a impressão generalizada é que a política americana continua no mesmo rumo de sempre, com a diferença de que agora o que se prepara parece ser uma grande guerra.

Na esfera pública há pouco conhecimento positivo dos árabes e do islã ao qual recorrer para contrabalançar essas imagens negativas que se disseminam: os estereótipos de um povo lascivo, vingativo, violento, irracional e fanático persistem. A Palestina é uma causa que ainda não cativou a imaginação, menos ainda desde a conferência de Durban.

Até mesmo em minha universidade é raro ser oferecido um curso sobre o Alcorão. "History of the Arabs", de Philip Hitti -o melhor livro de um só volume que existe sobre o tema, em inglês-, está esgotado. A maior parte do que existe disponível é material polêmico e adverso: os árabes e o islã são motivos de controvérsia, em lugar de serem temas culturais e religiosos como outros quaisquer.

O cinema e a TV estão repletos de terroristas árabes sanguinários e pouco atraentes e já o estavam antes do massacre terrorista, que cheira mais a patologia criminosa do que a qualquer religião.

Parece estar ocorrendo em alguns meios de comunicação impressos uma campanha não declarada para introduzir a marteladas a tese de que "agora somos todos israelenses" e que os ocasionais homens-bomba palestinos são praticamente a mesma coisa que os ataques do dia 11. É evidente que a opressão e a marginalização da Palestina foram apagadas da memória, como também o foram as muitas instâncias em que muitos palestinos (entre os quais eu me incluo) condenaram os atentados suicidas. O resultado é que qualquer tentativa de situar o horror num contexto que inclua as ações e o discurso dos EUA é criticada e repudiada com o argumento de que justifica os ataques.

Essa atitude é intelectual, moral e politicamente desastrosa, pois a equação que iguala compreensão e justificação é profundamente errônea. O que a maioria dos americanos acha difícil acreditar é que as ações dos EUA, como país, no Oriente Médio e no mundo árabe causaram ressentimentos profundos e são vistas, de maneira que não é tão equivocada assim, como ações empreendidas em nome do povo americano.

Essas ações são o apoio incondicional dado pelos EUA a Israel; as sanções contra o Iraque, que perdoaram Saddam Hussein e condenaram centenas de milhares de iraquianos inocentes à morte; o bombardeio do Sudão; a "luz verde" dada pelos EUA para a invasão israelense do Líbano, em 1982 (durante a qual perderam a vida quase 20 mil civis); a utilização da Arábia Saudita e do Golfo, de modo geral, como se fossem um feudo particular dos EUA, e, por fim, o respaldo aos regimes árabes e islâmicos repressores.

Existe uma diferença enorme entre aquilo do qual o americano médio tem consciência e as políticas frequentemente injustas e impiedosas que, com ou sem consciência disso, são aplicadas no exterior. Cada veto dos EUA a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU condenando Israel pelos assentamentos ou o bombardeio de civis pode ser deixado de lado pelos habitantes de Iowa ou Nebraska, que podem vê-lo como algo sem importância e provavelmente correto, mas será lembrado com enorme precisão pelo cidadão egípcio, palestino ou libanês, a quem fere ao máximo.

Em outras palavras, existe uma dialética entre as ações concretas dos EUA, por um lado, e as atitudes conseguintes dos EUA, pelo outro, que guarda pouca relação com a inveja ou o ódio à prosperidade, à liberdade ao sucesso mundial dos EUA. Pelo contrário, todos os muçulmanos com os quais tenho conversado expressaram perplexidade diante do fato de que um país tão extraordinariamente rico e admirável como os EUA (e com indivíduos tão simpáticos quanto os americanos) tenha agido, em nível internacional, com desprezo tão desalmado com relação aos povos menores.

Também é certo que muitos muçulmanos e árabes têm consciência da
influência que o lobby pró-israelense exerce na política americana e do terrível racismo e das diatribes divulgadas em publicações pró-israelenses como "The New Republic" ou "Commentary", sem falar nos analistas políticos sedentos de sangue como Charles Krauthammer, William Safire, George Will, Norman Podhoretz e A. M. Rosenthal, cujas colunas expressam ódio para com árabes e muçulmanos.

Assim, atravessamos um período de sentimentos turbulentos e volúveis e também de medos profundos, com a promessa de mais violência dominando a consciência das pessoas, especialmente em Nova York e Washington, onde as terríveis atrocidades de 11 de setembro continuam muito vivas na consciência pública. Eu percebo isso claramente, e o mesmo se dá com todos que me cercam.

Apesar disso, é encorajador perceber que, apesar da atuação lamentável dos meios de comunicação, estão começando a surgir discordâncias, petições de resolução e ação pacífica, e que estão se ampliando os chamados por alternativas que não sejam a de mais bombardeios e destruição. Em primeiro lugar, vem sendo manifestada a preocupação com a erosão das liberdades civis e do direito à privacidade, em razão da exigência do governo de dispor do poder de grampear telefones, deter e manter presas pessoas do Oriente Médio por suspeita de terrorismo e, em linhas gerais, induzir um estado de alarme, desconfiança e mobilização que pode conduzir a uma paranóia semelhante à que existia nos tempos do senador McCarthy.

Dependendo da leitura que cada um faz dos fatos, o hábito americano de hastear a bandeira em todo lugar pode parecer patriótico, é claro, mas o patriotismo pode conduzir à intolerância, aos crimes de ódio e a todo tipo de reação coletiva desagradável. Vários analistas já fizeram advertências nesse sentido e, como eu já mencionei, até o próprio presidente já disse que "nós" não estamos em guerra com o islã ou os muçulmanos. Mas o perigo está aqui e já foi devidamente assinalado por outros especialistas, fato que tenho prazer em afirmar.

Em segundo lugar, muitas convocações e reuniões já foram feitas para tratar do tema da ação militar que, segundo uma pesquisa, 92% dos americanos parecem desejar. Entretanto, como o governo não especificou quais são os objetivos desta guerra ("erradicar o terrorismo" é mais metafísico do que real), nem os meios, existe grande incerteza sobre para onde estamos indo, em termos militares. De modo geral, porém, o discurso vem se tornando menos apocalíptico e religioso -a idéia da cruzada já desapareceu quase por completo- e tem se centrado mais no necessário, passando por cima de palavras como "sacrifício" e "uma guerra longa, diferente de todas as outras".

Em escolas, igrejas e locais de reunião, muitos debates vêm sendo promovidos sobre qual deveria ser a resposta americana. Já ouvi dizer que algumas famílias das vítimas disseram que não acreditam que uma vingança militar seja a resposta adequada. O problema é que se reflete sobre o que os EUA deveriam fazer, mas lamento ser obrigado a informar que ainda não está sendo feito um exame crítico da política americana no Oriente Médio e no mundo islâmico. Espero que isso ocorra.

Espero que mais americanos se dêem conta de que a principal esperança para o mundo consiste nesta comunidade de consciência e compreensão e de que podemos melhorar muito tanto no que diz respeito a aumentar a proteção dos direitos constitucionais quanto a abrir os braços às vítimas do poder dos EUA. É claro que isso não resultará numa mudança da política em relação à Palestina ou a um orçamento de Defesa menos parcial, nem tampouco a atitudes mais esclarecidas com respeito ao ambiente e à energia, mas onde, se não nesta marcha-a-ré decente, pode caber a esperança? É possível que esse grupo de opinião cresça nos EUA, mas, falando como palestino, também preciso ter a esperança de que esteja surgindo um grupo semelhante no mundo árabe e muçulmano.

Precisamos começar a pensar em nós mesmos como responsáveis pela pobreza, ignorância, analfabetismo e repressão que dominam nossas sociedades, males que permitimos que crescessem, apesar das queixas que fazemos contra o sionismo e o imperialismo. Quantos de nós, por exemplo, já nos manifestamos honesta em favor de uma política laica e condenamos o uso da religião no mundo islâmico com tanta contundência quanto denunciamos a manipulação do judaísmo e do cristianismo em Israel e no Ocidente? Quantos de nós denunciamos todas as missões suicidas como imorais, apesar dos estragos feitos pelos assentamentos e do desumano castigo coletivo? Não podemos continuar a nos esconder por trás de injustiças cometidas contra nós, nem continuar a lamentar passivamente o apoio dos EUA a nossos líderes impopulares. É preciso divulgar uma nova política secular árabe, sem justificar nem apoiar por um instante sequer a militância de pessoas que querem matar de maneira indiscriminada (o que é uma loucura). É preciso acabar com a ambiguidade sobre esse ponto.

Venho dizendo há anos que nossas principais armas, como árabes, não são militares, e sim morais, e que a única razão pela qual a luta palestina pela autodeterminação ainda não cativou a imaginação do mundo é que parece que não temos claros quais devem ser nossos objetivos e métodos e que ainda não definimos de maneira inequívoca que nosso objetivo é a convivência e a inclusão, não o exclusivismo e o retorno a algum passado mítico e idílico. Chegou o momento de deixarmos de lado as contemplações e começarmos imediatamente a examinar e refletir sobre nossa política.
Gostaria que o mundo todo tomasse o tempo necessário para ver onde nossos líderes nos conduzem e por que motivos. O ceticismo e a reconsideração são uma necessidade, e não um luxo.


  • Tradução de Clara Allain


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