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22/10/2001 - 06h01

Conheça "O Caminho para Candahar", filme afegão pedido por Bush

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MARIA BRANT
da Folha de S.Paulo

Nelofer, jornalista afegã morando no Canadá, recebe uma carta de seu país natal na qual uma amiga de infância diz que vai se matar. A jornalista parte rapidamente para o Irã, de onde tenta entrar clandestinamente no Afeganistão para dissuadir a amiga do suicídio.

Onde se lê Nelofer, leia-se Nafas, e onde se lê amiga de infância, leia-se irmã caçula: foi assim que o cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf transformou um episódio da vida de Nelofer Pazira no enredo de "O Caminho para Candahar", destaque da 25ª Mostra BR de Cinema, que acontece em São Paulo.

Pazira, 28, que atua como protagonista da obra de Makhmalbaf, a ser exibida pela primeira vez no Brasil no dia 29, contou à Folha por telefone, de sua casa em Ottawa (Canadá), como sua história acabou virando filme.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Folha - Por que você deixou o Afeganistão?
Nelofer Pazira -
Em 1989, os soldados russos iam partir do país e o governo estava promovendo um programa de conscrição forçada de jovens para substituir os russos do Exército Vermelho. Meu irmão tinha só 13 anos -eu tinha 16-, mas os meninos na escola começaram a receber treinamento militar para que, tão logo completassem 14 ou 15 anos, pudessem ser enviados para o front.

Um dia, meu irmão chegou da escola vestindo roupas militares, e meu pai, que odeia tudo o que tenha a ver com militares, achou que aquela era a gota d'água. Ele também criticava publicamente o regime comunista, portanto era preso de tempos em tempos, e temia que, se isso acontecesse de novo, ele não sobreviveria. A situação estava ficando intolerável, então decidimos ir embora.

Folha - Vocês foram diretamente para o Canadá?
Pazira -
Não. Vivemos como refugiados no Paquistão por um ano e só em 1990 viemos para o Canadá, como imigrantes. Ao chegar aqui, entrei na universidade, onde estudei jornalismo e literatura inglesa. Depois, fiz mestrado em sociologia e antropologia. Desde 1996, fiz dois documentários, ambos sobre a vida no Irã. Hoje, faço programas de rádio e estou montando um documentário sobre o Afeganistão.

Folha - Como você se tornou protagonista de um filme de Mohsen Makhmalbaf?
Pazira -
Eu tinha uma grande amiga em Cabul. Vivíamos no mesmo bairro, frequentávamos a mesma escola e crescemos juntas. Quando deixei o Afeganistão, prometemos uma à outra que permaneceríamos em contato.
Por muitos anos, nos escrevemos tão frequentemente quanto possível. Quando o Taleban tomou Cabul, em 1996, ela me escreveu uma carta contando como era difícil ficar presa em casa, porque o Taleban não deixava mulheres saírem à rua ou trabalharem. Mas ela estava otimista: achava que aquilo não duraria muito, que logo haveria paz, e eu poderia ir visitá-la.

Mas a realidade não mudou muito, e as coisas só pioraram, então ela foi ficando cada vez mais deprimida. Em 1998, ela me mandou uma carta em que dizia que eu deveria viver por ela e por mim, porque a vida dela já não tinha mais valor. Ela estava absolutamente deprimida e disse que não aguentava mais.

Eu senti que era uma carta de adeus, que ela ia se matar. Fiquei muito preocupada, pensei no que poderia fazer, e acabei decidindo ir ao Irã, à fronteira com o Afeganistão. Minha idéia era que, se conseguisse vê-la, talvez pudesse impedi-la de se matar.

Cheguei ao Irã e falei com algumas pessoas, que me prometeram que, na fronteira com o Afeganistão, encontraria afegãos que conseguiriam me levar clandestinamente a Cabul. Mas, quando cheguei à fronteira, os tais afegãos me disseram que o Taleban estava torturando suas famílias e que, se eu entrasse e fosse pega com um passaporte canadense, seria muito perigoso. Eles disseram que não poderiam me levar.

Voltei para Teerã e fiquei pensando, desesperada, no que mais poderia fazer. Então lembrei do filme de Mohsen Makhmalbaf, "O Ciclista", que tinha visto alguns anos antes. Sabia que era uma obra séria sobre o Afeganistão, que mostrava compaixão para com os refugiados afegãos. Pensei que, se Mohsen tivesse contatos no Afeganistão, poderia me ajudar. Liguei para ele, e marcamos uma reunião em seu escritório.

Contei minha história, mas ele me contou que havia filmado "O Ciclista" em Peshawar [Paquistão" e em Isfahan [Irã] e não tinha nenhum contato no Afeganistão. Mas falamos muito sobre a situação no país, e ele me contou sobre sua frustração com o fato de que, até mesmo no Irã, um país vizinho, as pessoas não soubessem muito sobre o que acontecia no Afeganistão. Então fui embora e passei algum tempo tentando encontrar outras formas de entrar no Afeganistão, mas nenhuma deu certo, e voltei para o Canadá.

Dois anos depois, ele me ligou, disse que faria um filme sobre o Afeganistão e me pediu para encontrá-lo no Irã. Eu fui e, quando cheguei a Teerã, ele disse: "Você se lembra de quando veio aqui e me contou a história de sua amiga e o que estava planejando fazer? Essa será a história do meu novo filme". Foi assim.

Folha - E você achou sua amiga?
Pazira -
Não, infelizmente não. Mas, cerca de seis meses depois de eu ter recebido aquela carta, soube através de um amigo da família que ela estava viva, passava bem e tinha se mudado com sua família para uma outra cidade que, na época, era mais segura. Mas já faz mais de um ano que não ouço falar dela, e não tenho acesso direto, nenhum endereço para onde lhe mandar cartas.

Folha - Você tem contato com alguém no Afeganistão agora?
Pazira -
Um tio e a família de minha mãe ainda vivem em Cabul. Mas é difícil manter contato porque as pessoas não têm telefone em casa e nenhuma rua fora do centro tem endereço -tudo o que havia lá já foi destruído pela guerra. Geralmente, eles usam pessoas que viajam até a fronteira e de volta à cidade para transmitir e receber mensagens.

Folha - Você teve contato com algum deles desde que os ataques ao Afeganistão começaram?
Pazira -
Sim. Não temos como contatá-los diretamente, mas também temos parentes no Paquistão, que usam esse sistema de que falei. Eles nos disseram que nossos parentes no Afeganistão haviam entrado em contato e reclamado que os preços de tudo estavam subindo e que não conseguiam pagar nem mesmo por uma refeição por dia.

Então, nossos familiares no Paquistão sugeriram que eles saíssem de lá e fossem encontrá-los. Mas eles não quiseram, porque sabem que não teriam para onde ir, não teriam trabalho. Isso foi tudo o que ouvimos falar deles.

Folha - O que você lembra da época em que vivia no Afeganistão?
Pazira -
Lembro-me de coisas boas e de ruins. As boas eram, por exemplo, poder andar pela cidade durante a tarde. Eu e essa minha amiga saíamos para longas caminhadas, gostávamos de poesia e líamos poemas uma para a outra. E às sextas-feiras, o dia de descanso no Afeganistão, íamos à casa de minha avó. Toda a família ia para lá, onde passávamos o dia. Eu me divertia muito.

Mas também tenho algumas memórias ruins. Vivíamos sob o regime comunista. Às vezes, eles entravam em nossa casa à noite, para fazer "buscas", mas nunca diziam o que estavam buscando.

Lembro-me de que pisavam com suas botas enormes nos carpetes da minha casa, jogavam tudo no chão durante a "busca" e iam embora. Também lembro que, pouco antes de irmos embora, estava ficando impossível viver em Cabul, pois os mujahidin lançavam mísseis na cidade para forçar as pessoas a ir embora e também para desacreditar o governo. Não sabíamos se era mais seguro ficar em casa ou sair à rua.

Havia esses aspectos ruins, mas minha vida cotidiana era boa. Ainda havia um sentimento de esperança no ar, e também a chance real de que, algum dia, algo acontecesse e as coisas mudassem. Mas isso não aconteceu.

Folha - Você ficou surpresa com o estado do país quando voltou?
Pazira -
Bem, eu nunca voltei a Cabul, que foi onde cresci. Quando fizemos o filme, filmamos na região da fronteira do Irã com o Afeganistão. Mas eu vou muito ao Irã e ao Paquistão, para ver minha família e conversar com refugiados afegãos. Toda vez que falo com eles, fico chocada.

Chocada com o fato de que as coisas se transformaram de ruins em piores ainda. Chocada com o grau de ódio que passou a existir entre afegãos de diferentes grupos étnicos. Costumávamos viver em paz uns com os outros, mesmo que os diferentes grupos não se reconhecessem como iguais.

Na última vez em que estive no Paquistão, alguns de meus parentes vieram de Cabul e descreveram como viviam sob o Taleban. Era difícil acreditar que algo assim pudesse estar acontecendo, que seres humanos pudessem tratar outras pessoas dessa forma.

Folha - Os ataques podem resolver essa situação?
Pazira -
De forma alguma. Os ataques só vão complicar ainda mais. Só vão acrescentar mais gente aos 2,5 milhões de afegãos mortos nos últimos 20 anos. Eles já estão contribuindo para aumentar o número de 6 milhões de refugiados, que fugiram para todas as partes do mundo nos últimos 20 anos. Só vão contribuir para detonar as mais de 10 milhões de minas terrestres espalhadas pelo país sem nenhum mapa e que ferem entre cinco e sete pessoas todos os dias.

Eles dizem: "Agora, vamos bombardear o país e armar uma certa coalizão de grupos étnicos contra a outra". Isso só vai resultar em uma guerra civil no país.

Folha - E qual seria a solução?
Pazira -
Em vez de armar a população, o Ocidente deveria desarmar o país. Não seria um processo muito complicado. O Afeganistão é uma sociedade tribal, etnicamente definida, e as pessoas têm lealdade a seu grupo étnico, a suas tribos. A forma mais simples de fazer isso, em vez de fazer bombas ou soldados americanos caírem do céu, seria levar uma força internacional para o país, que faria acordos com o líder de cada grupo étnico para que ele desarmasse as pessoas.

Não é possível fazer um grupo étnico desarmar o resto do país, isso nunca vai acontecer. É preciso lidar com cada grupo individualmente. Quando o Taleban chegou ao Afeganistão, veio com uma bandeira branca, se autodenominava o "exército da paz". Todos os outros afegãos entregaram suas armas a eles. Não lutaram contra o Taleban porque achavam que a paz chegaria. Os afegãos estão cheios de guerrear. Se lhes for dada qualquer alternativa, eles vão abrir mão de lutar.

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