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28/10/2001 - 07h27

Modernização racha mundo islâmico

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MAX GARRONE
da "Salon"

A londrina Karen Armstrong, ex-freira católica e especialista em religiões, causou furor ao escrever sobre as restrições da vida no convento nos anos 60.

Publicou dois livros sobre o islamismo -"Islam, a Short History" (Modern Library) e "Muhammad, A Biography of the Prophet" (Harper USA). No Brasil, teve lançados "Uma História de Deus", "Em Nome de Deus" e "Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões" (Companhia das Letras).

Ela recebeu do Centro Islâmico do Sul da Califórnia um prêmio por promover o entendimento entre fés e, na entrevista a seguir, explica as características comuns a todas as formas de fundamentalismo e a razão pela qual os países muçulmanos têm dificuldades com a democracia.

Pergunta - Onde, no mundo islâmico, se traça a linha divisória entre fundamentalistas e ações extremas como o terrorismo?
Karen Armstrong - Há em muitos países muçulmanos forte aversão pela política externa americana, e isso faz com que seja difícil para eles afastar muitas lideranças fundamentalistas. Embora deplorem coisas como as que aconteceram em 11 de setembro, muitos integrantes das classes médias e profissionais liberais nutrem algum grau de simpatia por atos fundamentalistas. Esse ambiente pode incentivar o radicalismo.

Pergunta - Como se desenvolveu o fundamentalismo islâmico?
Armstrong - A educação tem muito a ver com isso. Não existe muita liderança entre os ulemás, ou doutores em religião, que, sob vários aspectos, se distanciaram do resto da população. Alguns poucos possuem carisma popular, mas realmente não são muitos. No século 19, os ulemás tendiam a retroceder diante das forças seculares do Estado. Havia um vazio ideológico.
Em nossos países laicos, deixamos a religião de lado. Nos movimentos fundamentalistas existentes em todo o mundo, as pessoas estão trazendo a religião de volta para o centro do palco. Num país como o Egito, a modernização vem se dando muito rapidamente, diferentemente do que acontece no Ocidente. É um processo tão veloz que apenas a elite compreende alguma coisa das normas e instituições da sociedade secular. Enquanto isso, a imensa maioria da sociedade fica a esmo, sem entender o que se passa.
Muitos grupos fundamentalistas têm largo apoio entre as massas porque conseguem retratar a modernidade sob uma ótica compreensível para as pessoas. No Egito, por exemplo, a Irmandade Muçulmana trouxe clínicas, o ensino e as leis trabalhistas e os inseriram num contexto islâmico.
Antes da Revolução Islâmica no Irã, a população iraniana nunca tinha tido um governo representativo. Ela tentou consegui-lo no início do século 20 e chegou a ter uma Constituição, nunca posta em prática. Os britânicos não deixaram que isso acontecesse porque havia sido descoberto petróleo na região e eles não queriam correr o risco de perdê-lo para o governo local.
O regime em vigor no Irã está tentando desenvolver uma democracia xiita, de modo que a democracia se torne mais compreensível para as pessoas. Em seus últimos dias da vida, Khomeini estava tentando passar o poder dos clérigos conservadores para o Parlamento. O presidente Mohammed Khatami está levando essa proposta adiante.

Pergunta - Por que parece ser tão difícil criar instituições democráticas em países muçulmanos?
Armstrong - A democracia é algo que nós, no mundo moderno, desenvolvemos em consequência de nossa modernização, e não porque, de uma hora para outra, quiséssemos entregar o poder ao povo. Ela faz parte da transformação que acompanha a economia capitalista. Na medida em que cada vez mais pessoas em níveis humildes precisavam envolver-se na produtividade do país, na condição de operárias, funcionárias de escritórios e assim por diante, elas precisavam receber um mínimo de educação. Mais educação, por sua vez, exigia participação maior nos processos decisórios do país. Para fazer uso de todos os recursos humanos que tinham a sua disposição, os governos se deram conta de que teriam que estender os direitos à toda população.
O mundo muçulmano ainda não teve tempo para criar uma democracia própria. Ele ainda não tem o mesmo tipo de economia capitalista de mercado, e, em muitos países, a democracia acabou sendo malvista porque foi associada aos maus regimes apoiados pelos Estados Unidos, governos encabeçados por déspotas como os xás do Irã.

Pergunta - Como fica a divisão entre religião e Estado no islã? Pelo que compreendi, não existe no Alcorão uma divisão do tipo "a César o que é de César, a Deus o que é de Deus", e a insistência de Khatami em impor um Estado de Direito no Irã suscitou reações diversas.
Armstrong - Tudo mudou com o processo de modernização. Embora, em termos ideológicos, não possa haver separação entre religião e Estado no islã, na realidade tanto sunitas quanto xiitas criaram essa separação desde muito cedo em sua história.
No mundo sunita, a separação se deu na prática, e a lei islâmica foi desenvolvida como uma espécie de cultura contrária à das cortes aristocráticas.
No mundo xiita, havia a separação entre religião e Estado em princípio. Dizia-se que, como todo Estado é corrupto, os clérigos não devem participar deles -que os religiosos devem afastar-se do Estado até que o messias chegue e estabeleça um Estado muçulmano correto. A insistência do aiatolá Khomeini em que um clérigo deveria liderar o Estado foi revolucionária.

Pergunta - Você quer dizer que a religião não tem sido parte importante do Estado nas sociedades islâmicas?
Armstrong - Os movimentos fundamentalistas em todo o mundo procuram trazer a religião de volta ao centro da política e da preocupação pública. Os Estados Unidos o fizeram no início do século 20, na realidade durante a Primeira Guerra Mundial.
O islã foi a última das três religiões monoteístas a produzir uma religião fundamentalista, no final dos anos 1960, após a Guerra dos Seis Dias. O fundamentalismo religioso deitou raízes em ambos os lados da guerra.
No Egito, o sentimento de que a política secular do presidente Nasser estava falida levou muitos egípcios a sentir o desejo de voltar para suas raízes.
A mesma coisa se deu em Israel, com as seitas ortodoxas.

Pergunta - O fundamentalismo vem crescendo rapidamente no mundo islâmico desde os anos 1970 ou tem sido isolado em países como Irã e Egito?
Armstrong - Não pense que todo o mundo muçulmano é fundamentalista. E nossa visão é que apenas os Estados Unidos e o Reino Unido têm fundamentalistas felizes, mas isso não é inteiramente verdade. A mesma coisa se dá no mundo muçulmano.
Nem todos os movimentos fundamentalistas são violentos. Por exemplo, a maioria dos movimentos fundamentalistas americanos e das organizações ultra-ortodoxas judaicas em Nova York e em Israel não é violenta.
Alguns dos movimentos estudantis egípcios se limitaram a prestar assistência aos estudantes, e a Irmandade Muçulmana se ocupava em grande medida em prestar serviços sociais à população em geral, até que foi reprimida e encarcerada por Nasser. Até então, sua preocupação principal tinha sido abrir clínicas e ensinar leis da fábrica às pessoas.

Pergunta - O que levou movimentos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana e o Hamas a se transformarem de organizações que prestavam serviços sociais em organizações terroristas?
Armstrong - O fato de o país estar em guerra. Os EUA têm tido sorte, na medida em que faz muito tempo que não estão em guerra. No Oriente Médio, porém, as tensões políticas e a guerra são praticamente uma constante há 30 anos. A raiz de todo movimento fundamentalista está no medo.
Os fundamentalistas acreditam que, em algum nível, a moderna sociedade secular liberal queira acabar com a religião. Mesmo os fundamentalistas americanos têm esse medo. Algumas pessoas nas pequenas cidades do interior dos Estados Unidos se sentem colonizadas pelo modo de ser e a ética distintos de Washington, Yale e assim por diante.
Nos países do Oriente Médio, o processo de secularização tem sido tão acelerado, em vários casos, que é sentido como uma agressão.
Na Turquia, Ataturk fechou todas as madrassas (escolas religiosas), obrigou os sufis a desaparecerem na clandestinidade e forçou homens e mulheres a adotarem a roupa ocidental.
No Irã, o xá Reza Pahlevi ordenou às tropas que atirassem contra centenas de manifestantes que protestavam contra a obrigatoriedade de adotar a vestimenta ocidental. Nesse ambiente, compreende-se que a secularização seja sentida como agressão.
Você tem pessoas que se sentem acossadas, raivosas e vingativas, que sentem que estão lutando por sua sobrevivência. Sob essas condições, qualquer pessoa age com agressividade.
Aqui no Reino Unido as pessoas têm tão pouco interesse pela religião que não há problema nesse sentido, mas temos o hooliganismo no futebol, em que se manifestam as experiências normalmente presentes na religião. Por meio do futebol, os torcedores podem colocar toda a sua alma num movimento, viver um sentimento coletivo e manifestar-se contra um inimigo comum, como ocorre em muitos movimentos fundamentalistas.

Pergunta - Por que a sra. liga a expansão do fundamentalismo islâmico ao pós-Guerra dos Seis Dias?
Armstrong - Eles sentiram que a adoção do método ocidental não estava funcionando, que esse método estava falido, e retrocederam para uma religião que já conheciam. Ao mesmo tempo, Khomeini estava estudando em Qum e começou a protestar contra o xá. Nos anos 60, ele foi deportado; em seguida houve um período de calmaria, e então, no final dos anos 70, uma intensificação repentina do fundamentalismo.
A Maioria Moral apareceu nos EUA, a Revolução Islâmica iraniana eclodiu, e também testemunhamos o surgimento do sionismo religioso em Israel, com o novo poder conquistado pelos partidos ultra-ortodoxos israelenses. No Oriente Médio, mais e mais pessoas inspiradas pelo exemplo da Revolução Islâmica começaram a voltar-se a seus ideólogos próprios, como Said Qutb, no Egito, que foi executado por Nasser em 1966.
Então o Afeganistão explodiu, e, em seguida, o Líbano. A Maioria Moral americana perdeu destaque após os escândalos sexuais nesse país, mas ela ainda existe e está se radicalizando. Não desapareceu. Esses movimentos não desaparecem -só se modificam.
Do mesmo modo, em Israel na década de 80 havia cada vez mais partidos fundamentalistas exercendo sobre o governo um efeito que eles nunca antes tinham tido. Israel era um Estado sem dúvida alguma secular, mas hoje nenhum político pode formar um governo sem contar com o apoio dos judeus fundamentalistas. Ao mesmo tempo, dentro do islã o fundamentalismo era visto como um setor que crescia em silêncio e sem parar. Hoje o islã é tão popular quanto foram as políticas socialistas e nacionalistas de Nasser nos anos 50 e 60. Criou-se um vácuo, especialmente no Oriente Médio, onde a sociedade se dividiu e rachou entre uma elite intelectual educada no Ocidente e que compreende o que acontece no mundo e, por outro lado, a enorme base da sociedade que, em essência, é abandonada sozinha com sua ética pré-moderna. Ela não compreendia as transformações, desde o novo tipo de planejamento urbano até as novas instituições políticas. Como poderia votar de maneira criativa quando não compreendia a política secular?
O Ocidente chegou a isso de maneira gradativa, de modo que as mudanças tiveram tempo de chegar até o povo. No mundo islâmico, a modernização rachou os países ao meio.
Vale notar que, na virada do século 20, todos os intelectuais muçulmanos eram pró-Ocidente, porque viam o Ocidente como ponta de lança do progresso e da justiça. Eles achavam que o progresso e a justiça acabariam por chegar até o povo. Diziam "esses ocidentais são muçulmanos melhores" (do que eles), porque o islã atribui grande importância à justiça social, e parecia que a justiça social estava chegando às massas no Ocidente.

Pergunta - O que vai acontecer agora, quando os fundamentalistas recebem muito apoio no mundo islâmico e muitos parecem dar apoio tácito às ações terroristas?
Armstrong - Todas essas são más religiões. Num mundo hostil, elas diminuem a importância das propostas de misericórdia da religião e fortalecem seus elementos mais belicosos. Quando se tem má religião, como a arte má ou o mau sexo, é fácil ela cair no niilismo e em coisas como as que aconteceram em 11 de setembro.
Quando chegam ao poder, moderam o tom, mas ainda afirmam: "Não queremos ser como os ocidentais". É uma ética que afirma que não é preciso ser como o Ocidente para ser progressista ou moderno. Rafsanjani [presidente do Irã, 1989-97" disse que o Irã seria uma democracia xiita -"estamos fazendo à nossa maneira". Mas, em última análise, eles constatam que, para um governo ser moderno, é preciso que seja democrático. Os governos da Europa oriental aprenderam a mesma lição após tentarem apossar-se de todos os benefícios da modernidade, mas ficaram para trás.
Vale lembrar que a cultura é contestada em todas as sociedades. Sempre há uma briga para decidir qual ideologia vai prevalecer. Esse conflito está acontecendo nos EUA, onde há pessoas que não se identificam com a democracia e têm má opinião a respeito dela; estão convencidas de que o governo federal irá cair e que Deus vai cuidar de tudo. Também em outros países se assiste a uma luta para determinar qual ideologia vai dominar.

Pergunta - O que dizer da declaração de guerra de Bush e de seu uso subsequente do termo "cruzada" para descrevê-la? Isso trai um problema básico de compreensão de como adotar uma abordagem que conquiste corações e mentes dos fundamentalistas?
Armstrong - Foi uma grande estupidez da parte de Bush falar em "cruzada" quando tentava apelar para os países muçulmanos. Os americanos não sabem o suficiente sobre o mundo muçulmano para montar uma boa campanha de relações públicas. Nas viagens que faço pelos Estados Unidos, me espanta a falta de interesse pelo resto do mundo.
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Tradução de Clara Allain

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