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30/10/2001 - 05h40

Escritor paquistanês relata humilhação na Alemanha

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TARIQ ALI
especial para a Folha

Às 7h de ontem, eu fui detido no aeroporto de Munique. Depois de um dia de entrevistas e autógrafos em livros e de mais dois dias no seminário "Islã e a Crise" do Instituto Goethe, co-patrocinado pela BMW, eu estava exausto e desesperado por uma xícara de café.

Fiz o check in e logo em seguida minha bagagem de mão estava passando
pela máquina de segurança. Nenhum objeto de metal foi detectado, porém insistiram em despejar minhas bagagem numa mesa. Jornais, cuecas sujas, camisas, revistas e livros despencaram a toda vista.

Como as notícias sempre chegam à Alemanha um dia após terem aparecido na imprensa americana, imaginei que as autoridades locais pudessem não estar cientes das declarações do FBI (polícia federal dos EUA) e da CIA (agência americana de inteligência) sobre a pouquíssima probabilidade de participação de Osama bin Laden e do Iraque na ameaça de antraz. E que estivessem em busca de envelopes com pó em minhas coisas.

Não havia nenhum tipo de envelope na minha bolsa.

O operador da máquina deixou de lado os jornais "Sud-Deutsche Zeitung (SDZ)", "International Herald Tribune" e "Le Monde Diplomatique".
Pareceu se interessar bastante no "Times Literary Supplement (TLS)" e inspecionou minhas anotações na margem da crítica de um livro.

Sugeri que, se quisesse saber minha visão sobre a atual crise, poderia lê-las em alemão no "SDZ", que publicara um artigo meu. Apontei-o para ele. O policial apanhou o texto rapidamente e, num estado de excitação, o passou para um policial armado.

Leitura suspeita
Seu olhos pousaram, então, sobre um fino volume em alemão que eu havia recebido de um editor local. Como ainda não houvera tempo de folheá-lo, estava ainda embalado em celofane. O suspeito livro era um ensaio de Karl Marx, "Sobre o Suicídio".

A referência ao suicídio foi o que deixou o policial realmente agitado. Mal repararam no autor, apesar de terem feito um verdadeiro alvoroço e passado de mão em mão o volume.

Eu estava um pouco confuso com o espetáculo, esperando que eles terminassem para que eu pudesse ler os jornais. Mas não era para ser assim.

O modo como começaram a olhar para mim foi uma indicação do que lhes passava na cabeça. Pensaram que realmente haviam apanhado alguém.
Meu passaporte e meu cartão de embarque foram tirados de mim, recebi ordens para refazer minha mala -sem guardar, porém, as cruciais "provas" ("SDZ", o "TLS" e o suspeito texto de Marx). Fui retirado da área de embarque e levado para o posto policial do aeroporto.

No caminho, o policial que me detivera me lançou um sorriso triunfante. "Depois de 11 de setembro, você não pode mais viajar com livros assim", disse ele. "Então vocês deveriam parar de publicá-los na Alemanha. Ou, melhor, deveriam queimá-los em praça pública", respondi.

Limite da paciência
Dentro do posto, outro policial me disse que eu provavelmente não embarcaria e que iriam investigar os vôos subsequentes. Nesse ponto, minha paciência evaporou. Pedi o telefone.

"Para quem você quer ligar?", perguntou o policial. "Para o prefeito de Munique", respondi. "Seu nome é Christian Ude. Na noite de sexta-feira, na livraria Hugundubel, ele conversou comigo sobre os meus livros e a atual crise. Eu gostaria de contar-lhe o que está acontecendo."

O policial desapareceu. Poucos minutos depois, outro (este usava barba) surgiu e me fez acompanhá-lo. Ele me levou até o avião, cujo embarque estava praticamente completo. Não trocamos nenhuma palavra.

No avião, um passageiro alemão veio até mim e expressou indignação em relação ao comportamento dos policiais. Contou-me como aqueles que haviam me detido voltaram para se vangloriar do modo como sua vigilância levara à minha prisão.

Vira-casacas
Foi um episódio assaz trivial, mas significativo sobre o clima da coalizão social-democratas-Verdes que governa a Alemanha hoje. É quase como se aqueles que estão atualmente no poder tentassem desesperadamente exorcizar seu próprio passado.

Enquanto o chanceler (premiê) Gerhard Schröder insistia, no Paquistão, que não poderia haver pausa nos bombardeios e que a guerra de atrito continuaria, seu ministro do Interior, Otto Schilly, estava ocupado planejando novas leis de segurança, que ameaçam as liberdades civis.

Schilly, que no passado foi um advogado radical, amigo da geração de 1968, ganhou notoriedade ao defender nos tribunais a Facção Exército Vermelho, uma rede terrorista urbana ativa nos anos 70. Disse-se na época que ele também apoiava as atividades da organização.

Em 1980, Schilly aderiu aos Verdes e se tornou seu principal porta-voz na luta contra a presença de mísseis Cruise e Pershing na Alemanha.

Em 1989, ele avançou ao se unir aos social-democratas. Hoje está atarefado justificando poderes extras para a polícia e infundindo um pensamento de "realismo" nos Verdes.

Uma das propostas realistas sob discussão é a concessão de jurisdição ao Escritório Federal para a Proteção da Constituição (equivalente alemão do FBI) para que o órgão tenha o direito de espionar indivíduos suspeitos de trabalhar contra a "causa do entendimento internacional ou da coexistência pacífica dos países".

Tendo em vista que a "pacífica coexistência dos países" hoje inclui guerra contra alguns deles, suponho que minha experiência foi um ensaio do que está por vir. Foi um pequeno arranhão, mas, quando não são tratados, eles podem levar a uma gangrena.



  • Tariq Ali é escritor paquistanês, autor de "Sombras da Romãzeira" e "Medo de Espelhos" (editora Record), entre outros


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