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22/11/2001 - 07h53

Câmbio afegão reflete vertigem econômica

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IGOR GIELOW
enviado especial a Cabul

Quando Amir Khan resolveu entrar no ramo de câmbio, há nove anos e meio, um dólar comprava 170 afeganis. Anteontem, em um prazo de 45 minutos, a cotação na loja desse ex-oficial do Exército comunista do Afeganistão variou de 40,8 mil a 45,2 mil.

Khaled Mansur, representante de uma loja no central Bazar da Prata, acompanha nervoso a variação da moeda afegã frente à rupia paquistanesa -anteontem, nos mesmos 45 minutos, entre 10h15 e 11h, ela flutuou entre 600 e 825 afeganis por unidade.

Khan, 37, e Mansur, 21, são duas peças da engrenagem básica da economia do Afeganistão após quase 30 anos de guerras civis, invasão estrangeira e períodos de relativa estabilidade. Eles se movem dentro do Mercado de Câmbio de Shahdar, no centro da velha Cabul, que faz ao mesmo tempo o papel de Banco Central e termômetro político do país.

O mercado é uma coisa frenética. São 1.500 cambistas ligados a 300 lojas, mas cerca de 1.100 operadores livres. Todos se espremem em um prédio semiconstruído de dois andares que tem um pátio no qual brigas físicas são uma constante -só anteontem, quando a Folha passou pelo local, foram pelo menos três.

É ali que são feitas as famosas fotos dos afegãos carregando pilhas de dinheiro para um lado e para o outro. Anteontem, em uma imagem que ecoava os tempos da hiperinflação alemã da década de 1920, uma mulher chegou a uma loja com uma bolsa e saiu com, literalmente, um carrinho de afeganis.

Os afegãos contam tudo em notas de 10 mil, lançadas há sete anos. Embora haja notas menores, elas são praticamente suvenires de uma economia baseada no contrabando e na informalidade. Além disso, são impressas na Rússia, e algumas das notas, fornecidas só para a Aliança do Norte, tinham valor depreciado na era Taleban. Quase todo negócio pode ser feito, porém, em rupias do Paquistão ou em dólar.

O papel de gente como Khan é dar liquidez ao mercado e, digamos, estabelecer diretrizes de política econômica. Ele faz rodar em sua loja 500 mil afeganis por dia. A cotação, que faria o frio Armínio Fraga infartar, flutua vertiginosamente.

"Dois fatores mandam aqui: se há problemas com o Paquistão e se há problemas entre as principais tribos", conta Khan. Mas a lógica pode ser tortuosa: ""Quando atacaram Nova York, em 11 de setembro, o afegani se valorizou em 120%, porque todos acharam que o Taleban seria responsabilizado e deixaria o governo. Isso seria bom para a economia, porque eles achavam que todos negócios feriam o islã".

Os cambistas não gostavam muito do Taleban. O vizinho de box de Khan, Mahmud Attaf, 32, foi espancado por guardas do Taleban que pediram propina uma certa vez. Mostra uma deformidade na cabeça. "Quebraram duas partes do meu crânio, mas fiquei bem depois."

Quando o Taleban deixou a cidade, na noite de segunda-feira passada, 82 das 300 lojas foram atacadas por milicianos em fuga. O prejuízo ficou na casa dos US$ 4,5 milhões. Khan teve sorte: "Tinha levado para casa quase todo o meu dinheiro para uma recontagem. Perdi só US$ 2.000."

Não se pagam impostos, apenas uma taxa de uso do box da loja -1 milhão de afeganis por ano. Além disso, todos os donos da casas de câmbio pagam 20 mil afeganis semanais aos sete guardas que fazem a segurança do local. Todas as transações de Khan são registradas à mão em um livro com quatro colunas, sem nenhum tipo de checagem oficial.

O ex-militar Khan começou a trabalhar com câmbio no governo de Mohammad Najibullah, e o fez por falta de opção. ""Na época comunista [1979-1989", meu salário bastava. Mas tive de juntar US$ 20 mil com outros dois sócios e abrir isso aqui", disse ele, que consegue aproximadamente US$ 700 por mês.

Um belo salário para os padrões de Cabul, onde famílias de até seis pessoas se sustentam em média com US$ 100 mensais, segundo relato de locais. E uma enormidade frente à média de US$ 800 anuais per capita, segundo dados não muito confiáveis da CIA (agência de inteligência norte-americana).

O papel de Mansur, que não conta quanto ganha, é outro. Ele deve ligar a prática do mercado à economia real. No caso, entenda-se por real o contrabando e o pagamento de salários da loja de roupas que representa.

"Preciso acompanhar a cotação e, ao meio-dia, informar ao dono da minha loja sobre a média da manhã, que será usada para definir preços ao consumidor, para pagar fornecedores e os funcionários."

Não há dados estatísticos verdadeiros sobre a economia afegã. A mesma CIA fala em um PIB de US$ 21 bilhões no ano passado, 53% concentrados na agricultura. Mas a sentença acima resume bem variação inflacionária diária, em especial nos salários e preços de tudo que não é nacional -ou seja, tudo exceto produtos de pecuária e agrícolas, além de tapetes e outros têxteis.

Na rota entre Peshawar (Paquistão) e Cabul, por exemplo, há caminhões carregados com tudo, de eletrodomésticos a móveis. Na divisa da fronteira em Torkham, no Paquistão, diferenças são resolvidas à propina ou à bala.

No comércio, a informalidade dá o tom. Há várias lojas estabelecidas, mas muitas estão fechadas. De todo modo, sua contabilidade não conhece algo como impostos. "Tudo é resolvido direto com os fornecedores", afirma Munshi, 29, o gerente de uma lojinha chamada Hamir Store, na parte nova de Cabul.

Como diz Eric Falt, porta-voz da ONU que acaba de voltar à cidade, ""reconstruir o país deve ser uma prioridade nos próximos anos". Para tanto, o tal Ocidente deveria antes dar uma passada no Mercado de Câmbio de Shahdar e ver como as coisas funcionam antes de pôr seus milhões e ir embora dando sua parte como feita.



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